Atualização 186 - Sondagem
BIOGRAFIA
O INSTANTE
Keila Abreu

Quando Ella chegou, atravessou o quarto devagar, olhando com cuidado todos os detalhes. Maria Clara dormia e Ella parou diante do leito. Ficou olhando a expressão de dor estampada naquele rosto jovem. Deteve-se nas marcas arroxeadas na pela, resultado das agulhas, remédios e soro. Maria Clara não percebeu sua presença. Ainda não era hora.

Com o mesmo passo lento, chegou à janela e ficou ali, observando o dia. Uma garoa fina molhava o vidro e, lá embaixo, as pessoas andavam apressadas, cada qual com seus problemas, cada uma com suas próprias aflições. Angústias grandes, problemas ainda maiores. Podia ver o peso arqueando os ombros daquelas pessoas que seguiam como formigas, perdidas no descompasso entre a pressa e a vida.

Soltou um suspiro profundo. Havia terminado seu trabalho mais cedo e foi logo estar com Maria Clara. Gostava de sondar como estava o ambiente antes de realizar suas missões. Costumava achar mais fácil trabalhar em hospitais, pois geralmente as pessoas sofriam naquele lugar e não opunham resistência.

Se Maria Clara estava sozinha no quarto, o trabalho seria ainda mais fácil. Contente com a idéia da facilidade no desempenho da última tarefa do dia, pôs-se a observar as coisas no quarto a fim de distrair-se. Gérberas num jarrinho de vidro e um cartão ao pé do buquê com um bilhetinho apaixonado. Sorriu com ternura. Um livro de Kundera sobre a mesinha e algumas revistas sobre frivolidades. Uma boneca de pano. Deteve-se naquele mimo. Maria Clara era quase adulta.

Dezesseis ou dezessete. Sorrisos na fotografia com a turma da escola. Um rosto muito corado e dentes brancos, emoldurados por cabelos escuros e brilhantes. Muito brilho nos olhos. Em nada lembravam aquela pessoa inerte sobre o leito, com a pele de parafina e uma expressão angustiante, apesar do sono profundo.

A enfermeira entrou e não deu pela presença de Ella. Verificou o soro e os aparelhos. Certificou-se de que a janela estava fechada e saiu sem cerimônia. Ella continuou sua inspeção. A camisola era cor-de-rosa com pequeninas flores bordadas. Ao lado da menina um urso de pelúcia muito antigo, com cheiro de infância. Aquilo fez com que ela sorrisse comovida.

Ficou olhando o rosto de Maria Clara e fez uma expressão intrigada. Havia muito tempo que cumpria sua missão dolorosa. Em muitas ocasiões tinha que trabalhar com crianças. E não conseguia conceber o motivo desse sortilégio. Tantas pessoas muito mais velhas, ali mesmo naquele corredor, repletas de dores e rancores, imploravam sua presença, e naquela noite estava ali só por Maria Clara. Olhou novamente as flores, os recados dos amigos, as fotografias, os sorrisos. Se fosse de outro modo, se ela não estivesse ali, sobre aquele leito de hospital, seria doloroso até mesmo para si, acostumada a esse fato, arrancar Maria Clara daquele lugar.

Mas olhava para ela e sabia da dor que estava sentindo. Não via, porém sabia, pela experiência que tinha, as escaras em suas costas, as dores que a doença lhe trouxe e que aumentavam a cada dia, a fraqueza, a dor de ir perdendo, àquela altura da vida, todos os símbolos de sua juventude, sua beleza, o brilho dos olhos. Sabia, porque era de saber, que Maria Clara, no dia anterior, tinha saído de sua quinta cirurgia.

E a hora ia passando. Ella ficou junto ao sofá, observando sons imperceptíveis. Ouviu os passos rápidos se aproximando. Um casal de meia-idade entrou com algum alvoroço. A mulher postou-se ao lado da menina e chorou com muito sentimento. Chamava-a de filha e apertava a mão pálida contra o peito, beijando-a com sofreguidão. O homem tocou os cabelos da mulher com alguma compaixão. E Maria Clara permanecia inerte. Não tinha dúvida, diante daquele quadro, que seria melhor para Maria Clara. Mas desespero de mãe era algo que sempre detinha suas forças. Não conseguia cumprir sua missão com desenvoltura. A mãe parecia pressentir sua presença e chorava com mais angústia.
Então ela se aproximou de Maria Clara e soprou algo em seu ouvido, firmando as mãos sobre sua cabeça. Então a menina acordou. Sentia dores fortes, mas vendo sua mãe naquele estado de desespero, disfarçou e conseguiu sorrir. Tomou as mãos da mulher entre as suas e beijou-as com muito carinho. Perguntou sobre o cachorro e mandou recado de que logo estaria em casa. Garantiu que sentia-se bem e que estaria em casa em poucos dias. Disse que precisava terminar de ler seu livro e que não agüentava de tanta saudade dos amigos.

A mulher sorriu. Os médicos haviam dito tantas coisas ruins e agora Maria Clara estava diante de si sorrindo e fazendo planos. Fez menção de ir chamar os médicos, porém a filha pediu que ficasse. Então foi o pai quem correu a chamar os dois homens que entraram no quarto sem acreditar no que viam. Então todos ficaram muito satisfeitos com aquilo que parecia ser um milagre. Parecia estar certo de que Maria Clara iria recuperar-se logo. Seu rosto estava levemente corado. As pessoas ali se puseram a conversar e seus corações estavam tranqüilos.

Mas era chegada a hora. Maria Clara olhou para a janela. Ella estava de pé e sua imagem pareceu uma figura celestial aos olhos da menina. Ella estendeu-lhe a mão com um sorriso muito sereno. Os que estavam no quarto viram apenas Maria Clara estender a mão na mesma direção da janela e, de pronto, perder as forças e fechar os olhos.

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