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BIOGRAFIA
O SABIÁ E A PRINCESA
Marcelo Moraes Caetano

Todos os dias, sete da manhã, a princesa Josefina acordava com o barulho que um sabiá fazia à sua janela. Já até o conhecia de tão íntimos.

Na verdade a princesa gostava muito dele, e queria mesmo que continuasse indo acordá-la, porque seus dias eram felizes; tanto, que ela tinha certeza de que o sabiá a abençoava com a própria felicidade, em pessoa.

Depois de ser acordada, ela descia as escadas do castelo já vestida para passeio, procurava sua amiga de brincadeiras, uma menina muito astuta chamada Lia.

Tomavam café, coisa feliz!

Então, as duas, juntas, costumavam passar a manhã no jardim, nos córregos, no chafariz, no meio das estátuas, escondendo-se uma da outra pelos arbustos, procurando folhas diferentes e coisas desse tipo. Lagartas-de-fogo as apraziam com seus pelos repletos de fios cor-de-fogo, espicaçados como a palha da vassoura de piaçaba, que a princesa via raramente quando se escondia da amiga na cozinha ou nos quartos de arrumação do castelo, porque lagartas-de-fogo são ainda mais preciosas do que rubis, acredite.

À tarde a princesa costumava ir ter aulas de mil coisas com seus tutores. Aprendia valores, idiomas, aprendia culturas infinitas, aprendia sobre as plantas, que ela realmente adorava, tudo.

Quando chegava a noite, ela costumava estar tão cansada, que mal punha a cabeça no travesseiro já ia dormindo de começo.

E sempre foi feliz.

No dia seguinte o sabiá fazia o seu canto único e a princesa acordava para brincar, estudar, aprender e dormir. O sabiá parecia sondar a alma da princesa.

A janela ficou muda um dia.

Uma manhã em que nada. E a princesa passou da hora, foi acordar lá pelas nove. Nada de sabiá.

Quando desceu as escadas, assustada com a ausência, foi procurar Lia, que chorava num canto do castelo a pensar: a princesa morreu. Pois era a única possibilidade para o atraso pela primeira vez na vida. A princesa por sua vez também não achou Lia, escondida bem demais.

Josefina achou que o sabiá morrera. Não podia estar vivo e ter-se esquecido dessa forma grosseira e descuidada de sua pupila princesa.

A princesa se sentiu uma vilã, comparou-se a um pedaço de madeira enjeitado, pensou que todos a haviam enganado por tantos anos e que ela era, na verdade, uma mendiga, uma menina pobre, uma falsa-princesa.

E Lia chorava num canto esquecida.

Olha só, a princesa pensou o seguinte: já que fui mesmo abandonada de vez - porque ser abandonado de vez é meio forte e exagerado, correto? -, eu abandono essa mentira que me fizeram. O fato é que, como se percebe, a princesa Josefina era exageradíssima, e qualquer coisinha já a punha de sobreaviso em relação a tudo.

Ligava com a maior facilidade o seu radar antiperigos. Às vezes esse perigo nem existia, ou era um periguinho de nada, mas a princesa já o encarava como um algo enorme. Enorme. E nem sempre essa atitude exagerada era ruim, porque muita vez ela deixou de cair num poço de cinco centímetros de profundidade, que lhe causaria um arranhado chato, por pensar que se tratava de um abismo de mil quilômetros de fundura, e, assim, salvou-se de qualquer incômodo desnecessário e malvado que lhe tentavam na pele. Ou seja, nem sempre o seu exagero era mau.

(Posso dizer uma coisa de foro íntimo? Exagero em si não é ruim, porque é uma espécie de lente de aumento da vida. Sabes, tu ainda és uma criança - és genial, eu sei, mas verás um dia o que eu verei um dia também, contigo, porque também sou uma criança: exagerar é apenas uma etapa da nossa enorme ladeira do amor. Eles têm o poder; deixe que eles tenham o poder - nós temos o amor. O resto é bobagem, e é melhor exagerar subindo, porque a única forma de se chegar ao alto é exagerando. Você já viu um foguete que não fosse exagerado? Aquele barulhão todo que faz para zarpar... Depois chega à Lua e fica lá, refestelado, isto é, dormindo, feliz, feliz. Até um balãozinho de festa junina é exagerado, e pode ser contra a lei, mas é lindo, subindo, porque tem de ter fogo pulsando na sua pobre boca; sendo que o grande entre todos os balões é o Sol, que simplesmente, para manter aquele corpo enorme, necessita de uma quantidade de fogo tão absurdamente grande em sua boca, que, se eu te contasse o quanto, certamente tu me dirias: ai que mentira! Que garoto mentiroso! Mas é O Exagerado, o Sol! Nem existe tanto hélio assim na natureza! Você falaria isto. Acho melhor passar por um ignorante honesto, às vezes, do que por um mentiroso sábio; que sabe tudo. E por aí vai. Pode acontecer de a gente saber que tem razão mas a guardamos para nós. O leão, rei da selva, baixou um decreto que impedia todos os animais com chifres de, após cinco da tarde, circularem pela floresta. No primeiro dia do decreto, dez para as cinco, estava o coelho entrando em sua casa, de volta mais cedo do trabalho. A esposa: "Querido, por que chegou tão cedo?" O coelho: "Por causa do decreto." A esposa: "Mas você não tem chifres, você tem ORELHAS." O coelho: "Até eu explicar para os guardas que isto são orelhas, e não chifres..." Sabe como é?...)

A princesa ficou desoladíssima. Tudo nela era meio íssimo, ou melhor, íssima, pois ela é uma menina - até quando chorava porque nasceram os filhotes da aranha do jardim, emocionada. Tudo era muito muito, e nem sempre era fácil dizer bom-dia sem ter de mobilizar para isso oitenta diferentes expressões do olhar e da boca e de toda a face e corpo.

Aliás, tão difícil quanto dizer bom-dia só mesmo escorregar por um arco-íris dentro do pote de ouro. (Sim: este conto trata de uma princesa e tem licença, por isso mesmo, para ser feminil e não raramente feminilíssimo. Se exagero, às vezes, exagero com o intuito de mostrar a ti o quão exagerados eram os pensamentos da princesa, e chego a me constranger por precisar conversar de forma tão pouco relaxada. Tu me compreendes? Tenta, vai.)

Muito agradecido.

E a princesa Josefina ganhou o fora do castelo, vendo a rua.

Primeira impressão: espanto!

Segunda impressão: fala alguma coisa, Deus! Deus!

E chega de mostrar as impressões de Josefina. Agora o que ela vê são os muros da cidade. Precisa sondá-los de verdade. É tudo tão novo.

Ao chegar perto de uma feira, que começara havia pouco tempo, a princesa começou a pensar em seguir com menos medo, mais no vai-da-valsa, já que estava ali fora mesmo. Deus-dará!

Vestida de camponesa. Josefina olhava para os potes de barro, tão bonitos e mal-acabados, pareciam anjos. Olhava para as réstias de alho penduradas em grossos feixes de lenha, como se fossem cachos de uva em suas videiras de carvalho. Em tudo o que via havia uma mistura de verdade com ficção: tudo era exatamente o que era podendo ser o que queriam que fosse e ao mesmo tempo o que poderiam ter dito ser e incluía-se em tudo o que seriam quem sabe.

Os tambores cheios de água, por exemplo, quem negaria serem açudes que desabrochavam como a flor do maracujá? Ou ainda mais: vitórias-régias ao contrário que em vez de boiarem sobre lagos traziam os lagos boiando em suas bocas abertas de cantoras de ópera?

E foi passando pela feira mais feliz do que sempre estivera, porque em seu pomposo e augusto jardim nunca houvera um único daqueles cheiros de feira abertos com beijo.

De repente a feira acaba seus limites e fica não-feira. Só uma estrada cheia de casinhas no fim determina a paisagem.

E Josefina, é claro, a segue. Ah, como ela queria que naquele momento Lia a acompanhasse, porque - ora, ora! - esta é a maior descoberta que Josefina já fez, muito melhor do que todas as lagartas-de-fogo e as folhas cheias de dedo no jardim disciplinado do palácio.

Ao passar em frente a uma casinha pobre, de janelas abertas com uma senhora debruçada, ficou estremecida, e parou:

- BOM DIA!

Nossa, que aquele era o primeiro bom-dia verdadeiro que Josefina rezava! Espontâneo, nem precisou sondar as reentrâncias de seu cérebro ara gritá-lo feliz.

E saíra tão espontâneo que a senhora respondeu de pronto: "Bom dia!"

O dia era bom, mesmo, por isso Josefina não conseguira mentir e dissera "bom-dia" pensando em "bom", não em "dia" como sempre fizera até ali.

A senhora falou:

- Minha filhinha está demorando muito, sabe?

Josefina não sabia o que era "demorando", porque não sabia o que era esperar. Quer dizer, sabia sim, porque agora esperava por Lia.

- Onde ela está?

- No palácio, é aia da princesa.

- Como ela se chama?

É a Lia! É a Lia!

A princesa quis se convidar para entrar, mas a mãe de Lia a convidou primeiro, e ela foi entrando cheia de dedos -como folha nova.

Tomaram umas bebidas diferentes, riram um pouco, em seguida Lia chega chorando.

- Ó mãe, a princesa sumiu...

A mãe de Lia se levanta para apresentar a menina à filha:

- Esta é... (esquecera-se de lhe perguntar seu nome...) a...

A princesa se levanta com muito cuidado e carinho e, ao olhar Lia, seus olhos são conchas de mel.

- Josefina?! Mãe, esta é a princesa!

E a princesa, com muita cortesia, se abaixa diante da amiga, fazendo-lhe uma reverência que se faz ante reis e rainhas, baixando a cabeça até quase o chão. E disse ainda:

- A seu dispor, majestade.

Lia deu uma gargalhada, porque é muito engraçadíssimo ver uma princesa reverenciando sua aia.

Uma pegou na mão da outra e foram correndo conhecer a floresta que guardava o Reino.

Lá na floresta foi que elas duas conheceram o leão, rei daquele reino, e até chegaram a passar perto do coelho, que, apressado, voltava para casa mais cedo com as orelhas muito pontudas para cima. É a vida... - sentiram com amor.

- As orelhonas daquele coelho até se parecem com chifres.

Josefina adorava enxergar além de tudo. Riam.

- Mas são apenas orelhas, Josefina, deixe de ser boba! - arrematou Lia.

- Orelhas?! - perguntou.

- Como seriam chifres?! - E riem até hoje.

Ora. São grandes amigas.

O sabiá sabia já.

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