Tema 188 - ASSOMBRO
BIOGRAFIA
O CÉU É O LIMITE
Eva Ibrahim

Seu Tuma, o farmacêutico, atendia uma freguesa e não reparou que um jovem estava encostado na porta; era Rafael, filho do Tonico, o lavrador. Quando a mulher saiu o rapaz se aproximou pedindo um vidro de “Mercúrio” para passar no machucado. O homem, então, reparou que ele entrara mancando muito e perguntou onde era a ferida. O farmacêutico arregalou os olhos ao ver as solas dos pés de Rafael; não havia mais peles, só carne viva sangrando. Era terrível! Deveria estar doendo muito! Pensou o homem assombrado. Com habilidade limpou as feridas, passou remédio e em seguida enfaixou os pés do rapaz. Não cobrou pelo serviço e quis saber o acontecido.

Rafael tinha dezoito anos e era o primeiro de oito filhos de um casal de lavradores; pessoas humildes, que viviam na região. Seu Tuma os conhecia da farmácia, era gente honesta. O rapaz abaixou a cabeça e gaguejando disse que estava treinando para ser um atleta; queria ganhar uma Maratona. Alguém lhe disse que para ser atleta não precisava ter estudo, era só treinar bastante. O homem coçou a careca e assustado perguntou: – Como? Corria descalço? Rafael respondeu que não tinha sapatos, só chinelos, mas não iria desistir, pois era a única chance de melhorar de vida. Dependia só de seus esforços e ele tinha muita garra; venceria a qualquer preço. Depois agradeceu e saiu mancando. O velho farmacêutico não podia acreditar no que ouvira, era de cortar o coração.

Durante duas noites Seu Tuma teve pesadelos com os machucados do rapaz e pela manhã decidiu ir até á casa de Rafael para saber se estava melhor. O homem tinha filhos e netos e se comoveu com aquela história. Cinira, a mãe, o recebeu na porta dizendo que o marido estava muito bravo com o filho, pois, este não o estava ajudando na lavoura, vivia correndo pelo pasto e agora estava de cama. O farmacêutico foi levado até o rapaz que ardia em febre. Seus ferimentos estavam infeccionados, precisava de um médico.

O jovem, amparado pelo homem, foi conduzido ao veículo e levado ao Hospital, onde ficou internado para tomar antibióticos. O velho coração de Seu Tuma sangrava de pena, tinha que fazer alguma coisa, a situação era extrema; nunca vira nada igual. Em uma semana Rafael recebeu alta e foi o novo amigo que o conduziu á sua casa. A mãe agradeceu pedindo para ele tirar aquelas bobagens da cabeça do filho, o velho sorriu e ficou calado. Estava imaginando ajudar o rapaz e não ceifar seus sonhos; esperaria que seus pés sarassem para ter uma conversa com ele e a família.

Estava sempre em contato e Rafael não via a hora de reiniciar os treinos, até que chegou o dia da surpresa. Seu Tuma comprara roupas, tênis e um boné para os treinos do rapaz e para ajudar a família lhe ofereceu um emprego na Farmácia. Recebeu em troca um largo sorriso e um abraço de cortar o coração; fizera a felicidade de um amigo. Rafael treinava de madrugada e após a saída do serviço, era incansável.

Durante meses o farmacêutico acompanhou e colaborou com os treinos do rapaz, que agora tratava como se fosse um filho; queria fazer dele um vencedor. Era um bom menino e merecia uma chance para realizar seus sonhos. A grande corrida se aproximava e ele temia uma decepção, por isso resolveu contratar um treinador para ajudar Rafael. Zeca era treinador de times de futebol, estava aposentado e era amigo de Seu Tuma, por isso aceitou o serviço. O rapaz melhorou muito depois que passou a receber treinamento e alimentação adequados; ganhou massa muscular e velocidade.

O coração de Rafael parecia sair pela boca quando chegou em casa com a inscrição na mão. A mãe abraçou o filho e com os olhos cheios de lágrimas lhe desejou sorte. O pai não implicava mais, pois, ele dava seu salário para ajudar nas despesas. Estava tudo correndo bem e o velho farmacêutico disse ao rapaz que ele iria á corrida com o treinador. Seu Tuma o veria pela televisão. O homem não queria deixá-lo ansioso com sua presença, desejava de coração que vencesse, mas sabia das dificuldades da prova; andara lendo a respeito do assunto.

Era o último dia do ano e a corrida de São Silvestre iria começar; Rafael estava assustado com a multidão e a grandeza da cidade de São Paulo. As “feras” conhecidas eram assediadas pelos repórteres, enquanto os outros ignorados e engolidos pela multidão. O rapaz se sentia uma formiguinha perdida ali no meio do asfalto. Sairia lá atrás, era número 366, teria que se desvencilhar dos outros corredores para alcançar á frente. O menino pobre estava alinhado com roupas novas da cor da Bandeira do Brasil e tênis de marca, presente de Seu Tuma; agora era a hora de dar tudo de si.

O treinador disse á ele que a corrida tinha quinze quilômetros, bem menos do que ele costumava correr, mas os obstáculos geográficos e o intenso calor eram os maiores inimigos a serem vencidos. Foi orientado a pegar água no percurso para evitar a desidratação e insolação, comuns naquela corrida. Rafael estava com medo, mas sabia que se mantivesse a calma conseguiria chegar ao final. Difícil seria vencer os Quenianos, mas poderia obter uma boa classificação e deixar Seu Tuma contente.

A largada foi dada e o menino corria como o vento, agora, estava no segundo pelotão, os da frente pareciam voar. Seu pensamento estava na chegada, era á realização de seus esforços. Seguia com determinação e depois do meio da prova alcançara o bloco da frente; eram oito homens dando tudo de si, venceria o melhor. Pegou água para suportar o calor, bem que o Zeca o alertou; a prova era muito difícil, estava exausto.

Ele percebia a população gritando e acenando bandeiras quando passavam, mas não podia perder a concentração ou ficaria para trás. Estavam próximos da chegada e havia três homens á sua frente, não poderia alcançá-los; eram os mais cotados da corrida. Agora a sua meta era garantir o quarto lugar; o velho amigo ficaria feliz assim mesmo.

Passou um, dois, três, era a vez dele e o cansaço queria dominá-lo. Com um esforço além de sua capacidade ele levou a fita no peito e caiu nos braços de Seu Tuma, que o estava esperando. Que assombro! Ele disse que não estaria presente na corrida, mas não resistiu e foi prestigiar o amigo. Rafael chorou abraçado ao velho farmacêutico e ao treinador. Eles não cansavam de elogiá-lo; era um vencedor.

Não subiu ao pódio, era sua primeira corrida, mas vencera muitos obstáculos e provara que o esforço é recompensado. Os três homens saíram abraçados, estavam felizes, venceram juntos aquela primeira batalha, outras viriam; era só o começo. A Maratona que o aguarde, um dia ele chega lá, porque O CÉU É O LIMITE.

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