Tema 188 - ASSOMBRO
BIOGRAFIA
SUBIU REDONDO
Luís Valise

Não fazia sol, o tempo estava encoberto e um ventinho fresco arrepiava os pelos das pernas, mas mesmo assim Beto suava em bicas, respirava com dificuldade, e tomava dribles desconcertantes do centroavante adversário. Mão de Vaca, goleiro e técnico do Universal F.C. não teve saída:

- Beto, você sai e entra o Detefon.

Beto saiu invocado. Por que justo ele estava sendo sacado do time, se todo mundo estava jogando mal?

Detefon fez o sinal da cruz, beijou o santo pendurado na correntinha e entrou em campo com o pé direito. O final foi desanimador: Universal 0 X Rio Bonito 4. No vestiário, Mão de Vaca justificou:

- Desculpe a franqueza, Beto, mas com essa barriga não dá. Ou você emagrece, ou sai do time.

Era a segunda vez que alguém tocava no assunto nos últimos dias. A primeira foi Dirce Lábios de Manteiga:

- Poxa, amor, goza logo porque não estou agüentando teu peso!

Beto não gozou logo, e ainda acabou broxando no meio da trepada. Lábios de Manteiga tentou consertar:

- Deixa eu ficar por cima, benzinho. Não adiantou. Beto saiu, chutando um cachorro que dormia na soleira do barraco:

- Vai te fuder! A barriga é minha, a vida é minha, eu faço o que eu quero!

Tamanha ingratidão só podia acabar mal.

Beto entrou no bilhar do Pernambuco. Poucos malandros treinavam jogadas de efeito, à espera de um pato que pagasse ao menos as despesas. Beto não gostava de jogo, mas gostava muito da cerveja sempre gelada que o Pernambuco mantinha em estoque:

- Perna, manda aquela que desce redondo!

Ficou ali conversando fiado, tomando uma garrafa atrás da outra. Daí o barrigão que atrapalhava a bola e a cama.

Desempregado há tempos, vivia beliscando a bolsa da Dirce para garantir a boa-vida. Agora, depois da briga, tinha medo de levar um pé na bunda:

- Não sustento broxa.

Pernambuco já dera um toque:

- Beto, quando você vai pagar a pendura?

- Já pago, já, Perna, estou esperando uma grana que está pra entrar.

Mas não havia grana nenhuma à vista, e Beto, no desespero, apelou pro caminho mais fácil: o furto.

Passou a estudar as possibilidades nas redondezas, já que não tinha como ir a outra parte. Escolheu o armazém do Antonio Trazo, um português de Trás-os-Montes que não vendia a fiado, só no cacau, e que devia ter um bom dinheiro em caixa. Beto viu que no quintal dos fundos o português guardava caixas vazias e outros bagulhos. E havia um vitrô do banheiro dando sopa. Seria moleza. Bastava empilhar alguns caixotes, entrar pelo basculante, passar a mão na grana e dar o pinote.

Duas da manhã, a Vila estava deserta. No Largo do Chafariz uma rodinha de otários queimava o fumo, longe do armazém. Beto escorregou pelas sombras, carregado de adrenalina e medo. Estourou a tramela de madeira do portão dos fundos, e entrou no quintal. Escolheu dois caixotes de madeira em bom estado, empilhou sob o vitrô, e subiu. Tirou a camisa e as calças, para facilitar a passagem. Estava aberto. Passou primeiro a cabeça. Em seguida, forçou a passagem do braço e do ombro esquerdo. O suor começava a escorrer pela testa. Descansou um minutinho, e fez o mesmo com o lado direito. Já tinha o tronco do lado de dentro, agora era apoiar-se na beirada da janela e forçar o corpo para dentro. O peito molhado de suor facilitou as coisas, e o tronco passou com dificuldade, mas passou. Quando chegou na barriga que a coisa empacou. Beto parou para avaliar a situação, e concluiu que não estava nada boa. O jeito era fazer toda a força possível, então contou um, dois e.... três! O esforço foi tremendo, mas não saiu do lugar. A barriga não passava para o lado de dentro. Fazer o quê? Paciência, teria que escolher outro alvo. Depois de mais um tempinho de descanso, deu um violento arrancão de volta, e... nada. O suor agora escorria como água em pedra de mina, abundante. Ao perceber que começava a perder a calma, Beto falou consigo mesmo:

- Vai com calma, Campeão. Tudo que entra, sai.

Não pode deixar de lembrar da Dirce, e sorrir das ironias da vida. Vamos lá, mais uma vez: um, dois e... três! Ficou no mesmo lugar. O ferro do vitrô começou a arrancar a pele da barriga, tamanho o esforço. O desespero foi tomando conta do Campeão, que agora debatia inutilmente as pernas penduradas do lado de fora. Deixando o medo e a vergonha de lado, Beto gritou:

- Socorro! Alguém me ajude!

Sua voz estava presa dentro do armazém. Nem os vizinhos, ou os maconheiros do Largo do Chafariz, ouviam nada. Gritou de novo, e de novo. A vagabundagem, o cigarro e a cerveja apresentaram a conta, e o preço foi uma dor no peito. Agora ele suava frio, e tremia. Outra vez falou sozinho:

- Porra, e isso lá é jeito de morrer?

Foi o que disse um bombeiro quando amanheceu. A multidão em alvoroço comentava entre piadas o quadro insólito. A cueca do morto ameaçava arriar, deixando aparecer o rego da bunda. A armação do vitrô teve que ser serrada. Antonio Trazo acompanhava tudo mal humorado:

- Esse porra ainda me deu prejuízo!

Mão de Vaca repetia:

- Eu avisei. Eu avisei.

Dirce Lábios de Manteiga não dizia nada, sentindo um misto de dó e alívio.

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