Tema 190 - O LADO BOM...
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SANGUE DE PEDRA
Eduardo Prearo

Neste maio sem grana, sem gana, vai indo e o senhor? Todo inveja, quer o quê, se não sua, se lhe parecem insustentáveis? Pega a mala, olha pra flor roubada do casamentinho...saia, saia, saia daqui! Sem grana não se tem personalidade agradável ou fascinante, não se é nada. Negra flor que tem uma única pétala vermelha, negra flor cheia de gotas de orvalho de água torneiral. Se está sem grana é efeito, bem-feito; pensa mal, age mal. Acabou o perfume, e do fundo, do fundo do frasco, sobe um odor de haxixe. Está à mercê do desprezo alheio. Do esquecimento. A fita fúcsia ele a enrolou na garrafa de azeite, agora vazia. O terá de se habituar com a nova realidade virá de boca desconhecida. Como, não sabe. Morrerá sem ver esse ano o mar. E os sonhos todinhos demais altos condersar-se-ão em uma única noite em um bom hotel.

Sai, sai mesmo. A brisa, existe brisa que ainda que lhe é boa, a brisa do estio outonal da madrugada. Ah, ele gosta de brisa, é homem de brisas. Se for ali, não, se for lá, não, pra onde então? Choque, choque que é amor? Ele existe, choque. Toma o coletivo, bate a gaveta do caixa o cobrador, passa a catraca. E pensar que antes de óbvio se achava lindo! Mas não é o que tudo indica que não se acha bonito mais. De novo um dia sem sentido; vergonha e inveja dos que têm grana. Não agradece! Mais um dia azul, de novo azul. Mais um sol forte ao meio-dia, meio-dia em que ele perdoa a própria fome e ela se esvai. Agora pode ir fome, está perdoada. Em época de crise assim, não é assassino. Não mate, não mate, mas os últimos centavinhos saem do bolso e lá está a fome, moribunda! E a fome não morre de teimosa, e ficam se perguntando se já almoçaram. Depois chega a tarde, e na incoação da noite o que fazer? Plausível talvez seja uma moça. Não uma moça barbada que é a que ele se vê, não. O bom de tudo é a esperança. Abusado, agora paga com a escassez de tudo, ou quase tudo. A noite chega e o vermezinhos brancos tornam-se comestíveis. Nojo, nojo de si próprio, e de manhã uma autoestranheza que vem da ressaca do álcool de uvas francesas. Romântico, falou algo com alguém sobre amar por dois, amar também pela pessoa que não o ama, isso num relacionamento; falou enquanto bebia. Perguntaram-lhe se ele se sentia importante. E ele "não, não me sinto importante". Será isso a causa dos interrogatórios, esse "ele deve sentir-se importante"? Agora, tirando as roupas puídas do guarda-roupa, pensa que se falasse "me sinto, me sinto importante, sim, e daí, é crime"?, ou então se não falasse nada, não respondesse, talvez estivesse melhor no momento. Outro dia mesmo um homem ficou na marcação cerrada e uma mulher veio lhe dizendo:"a mim ele respeita, eu me imponho"! Ele não se impõe, e aí se aproximam devagar para saber tudo sobre sua vida, e quem sabe enxergá-lo injusto, desonesto, abusado. Não sabe ainda se impor sem parecer rude, vulgar. Acordou querendo viajar, talvez para o sul, mas após tomar um gole de café extra-forte e sem açúcar, pensou que não aguentaria o minuano em sarjetas ou albergues para pobres. Outro dia mesmo ficaram encarando-o na porta do prédio. "Mas esse senhor tem cara de favelado, deve se achar importante. Não, não, não aceito"! Calou-se, pois o poder parecia uma pessoa como ele, como ciclano, como fulana. Ele e o poder haviam se vulgarizado. Talvez quisessem ainda modificá-lo, ou então interná-lo em um sanatório. Era isso que pensava na noite anterior, sentado, comendo uma perada. Olhava pra esquerda, olhava pra direira, comia, sorria pra parede, comia. Transfigurá-lo era tirar sangue de pedra.

Sai. Anda por aí, toma escada rolante. Alguém atrás pergunta para a brisa: ele ou ela? Ele também não sabe, não sabe nada sobre o ele-ela. Não lhe ficou esclarecido se se acha importante. Não, não importante como Mr. Edison, que disse que 99% é suor (ele disse isso em New York?), e 1% inspiração, algo assim; tem de olhar em um livro de autoajuda. Não se acha importante. O ele-ela o persegue, e ele de repente é ela, e ele de repente é ele. Imbróglios...No ele-ela, puído aos quarenta, feiúra, é o seu.

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