Tema 191 - DENGOS E AGRADOS
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DENGOS E AGRADOS EM 3012
Suzana Fagundes

Era o ano de 3012, século XXXI depois de Jesus Cristo. Tudo era feito digitalmente. Não havia toques. Apenas a colocação rápida das mãos no ar, em frente aos aparelhos que se queria fazer funcionar. Era assim com o abrir portas e com o fazer funcionar qualquer aparato eletromagnético. Já a comunicação entre pessoas havia ultrapassado a imposição das mãos. Não havia palavras. As conversas eram por via telepática.

A holografia era muito usada na época, existente desde o século XX, quando foi concebida. Bastava invocá-la, no caso de se ter que dar ao interlocutor uma idéia mais ampla, tridimensional de qualquer assunto.

Não se sabia mais a qual dimensão pertenciam aqueles seres daquela era. Quarta? Quinta? Também não interessava saber. Apesar de as viagens interplanetárias levarem os terráqueos até onde quisessem, gostavam do planeta onde estavam em 3012. A Terra tinha se transformado em um paraíso. Tudo funcionava. Desde a beleza plena, em flora e fauna, à arquitetura, à arte, às inter-relações entre pessoas, animais e pessoas, até as crianças, que gozavam da mais terna e pura sabedoria.

Elas eram a vida no planeta: muito calmas, com o olhar penetrante, e com o coração cheio de amor. Brincavam de montar hologramas estranhos, talvez aos moldes do antigo brinquedo Lego que as crianças usavam no século XX ou XXI, mas que tinham deixado de usar desde há muito. Sim, porque havia uma necessidade de não acumular o menor lixo ou resíduo no planeta.

Lá, tudo estava devidamente limpo, fato que levou muitos séculos para ser alcançado. Folhas secas eram húmus automaticamente. Os ventos eram amenos e quase inexistentes. Parte da paz que, durante séculos, foi-se instituindo no planeta Terra. Era tudo muito pacífico: as folhas das árvores não se deslocavam em nenhum tipo de vendaval. As chuvas eram esparsas, acontecendo sob boletins meteorológicos com programações extensas e precisas, com divulgação também telepática.

Havia máquinas programadas para mostrar como era a vida nos séculos que haviam se passado. Não usavam películas como nos cinemas de outros séculos. Era tudo em hologramas. Quase vivos. Os horários para vê-los coincidiam com os desejos individuais das pessoas que ali viviam. Bastava um desejo de rever qualquer coisa, fato ou lugar, e já a vida se encarregava de formar coincidências que levassem o dono daquele desejo a uma viagem até o local escolhido para ver o que desejasse.
Os transportes eram pequenas máquinas voadoras, que se locomoviam com tamanha inteligência, só comparável aos robôs do século XXII. Eram quase humanóides. Naves locomotoras providas de tal encantamento, que faziam a viagem além de virtual, mais que virtual, quase verdadeira.

Tudo tinha vida naquele lugar, naquele planeta. Todos eram artistas: criativas criaturas capazes de edificar até sonhos. A capacidade de cada indivíduo era infinita.

Confiavam uns nos outros, e se consideravam iguais. Não havia cor. Na verdade, tudo era meio cinzento. As coisas, as pessoas... Mas quando o raio de sol ou de lua banhava a Terra, as cores se formavam translúcidas, incrivelmente fiéis à beleza, à aparência devida a cada coisa ou ente.
As cidades eram muitas, com suas fundações ao largo dos séculos consecutivos. Eram de cristal, vidro, de acrílico ou de apenas luz.

Nada destoava nessas cidades. Era tudo equilibrado, conectado com tudo.

As dimensões se misturavam à medida que a vontade de ser, de estar ou fazer se firmava entre os moradores do planeta. Eles sabiam tudo, mas lhes agradava contemplar os hologramas mais uma vez.

O sorriso era o cumprimento mais cerimonial entre eles. E nas crianças também. Tudo era permitido, porque tudo era bom, era pensado, estabelecido através de vidas, muitas vidas, não dependendo mais de reencarnações.

Era o Bem personificado em seres multidimensionais, sem ânsias, sem depressões, sem doença alguma. Ao invés de médicos, como em muitos séculos passados, havia os artistas: criaturas quase circenses, malabaristas ou mágicos em potencial. Portadores da capacidade de criar cenários, direções de cenas fantásticos.

Na verdade, tudo caminhava devagar, uma coisa atrás da outra, sem muito gestual, apenas acontecências naturais e vivas.

Era o mundo da imaginação. Onde tudo ou quase tudo já havia sido imaginado. Tudo era, simplesmente: sem futuro, apenas o presente, e uma leve nostalgia e encantamento pelo passado, legítimo passado.

Nas cidades, havia lugares como museus à disposição dos seres, portando máquinas milenares, inacreditáveis geringonças, agora totalmente inúteis para aquela idade do planeta Terra. Por isso, tudo se tornava contemplativo, curioso, conversado e discutido telepaticamente com os companheiros entre si. Havia, também, antiquários com luminárias elétricas artificiais, garfos, facas do tempo em que os corpos se alimentavam de vegetais, carnes etc.

Prazer e entretenimento eram duas verdades par e passo. Automáticas. Não havia lugar para tristezas ou lamentações. Para dúvidas ou distrações. Era tudo medido, natural, belo e eterno.

A morte não existia. Todas as criaturas eram livres e eternas. Podiam optar por seguir em frente, cosmos adentro, para cima, para o lado, para qualquer planeta mais evoluído ou menos evoluído. Aí estava a grande aventura: experimentar tudo de novo, renovado, se alguém quisesse, assim, sem problema algum. Sem barreiras ou fronteiras. Bastava, muitas vezes, fechar os olhos, e, ao abri-los, já havia se transmutado o ser, o indivíduo. Porque cada civilização era diferente. Comparada mediante a idade cronológica e evolutiva de cada planeta distintamente.

Um dia, um bando de crianças do planeta Terra, em 3012, resolveu montar um espetáculo que fosse bem primitivo. Brincavam de Física Quântica. Usavam, cada uma, a sua presença multiplicada em vários outros eus.

Num instante, formou-se uma enorme multidão de seres infantis em silêncio, mas comunicando-se através da telepatia. De repente, uma das crianças emitiu o seguinte pensamento:

- Desejo vislumbrar dengos e agrados.

Era dado, ainda, às crianças, especular, e esta era uma de suas brincadeiras. O pedido foi uma espécie de comando a um grande computador, análogo ao que se fazia na antiga e velha Internet. O desejo foi imediatamente aceito e respondido, embora a ordem fosse estranha e impossível aos novos tempos: .dengos e agrados!... De onde a criatura colheu o objeto de sua pergunta? Em que arquivo de século ou ano? Terão os comandos dengos e agrados sido pesquisados no Google de antigamente? (Esquisito.)

No mesmo instante, o holograma se formou, numa certa idade da Terra: eram bebês sendo acarinhados, tocados, amados, com toques de mão, da mão cheia de carinho, como viviam os pais e os filhos naquela época. Usavam da voz que era peculiar àquele momento histórico: choros de bebês. Além disso, palavras carinhosas eram emitidas por pais e por crianças maiores, do mesmo tamanho dos pequeninos seres artistas lá do distante planeta azul, a Terra, no ano de 3012, século XXXI.

Até que, esteticamente, os meninos viram que a Terra foi tão primitiva antes quanto poderia ser: tempo de agrados., de dengos., de palavras de carinho. Era tudo quase totalmente carnal. Mas nem tanto. Atrás daqueles corpos holografados, havia a Mente, a Psique em desenvolvimento, normais àquela idade vigente no planeta.

E tudo aquilo num instante se transformou numa espécie de regressão de idade. O tempo passou a existir para os meninos e a visão era a vida muitos séculos atrás, com toques, palavras, gestos, aconchego, calor, conformidade com as então condições de vida dos humanos naquela idade específica da Terra. Os meninos ficaram maravilhados.

Depois da experiência, voltaram ao seu tempo naquela nova Terra arrumada, plena, cheia de respostas a qualquer pergunta, a um estado de coisas que poder-se-ia chamar de a maturidade da Terra.

Todo o passado dela eram apenas memórias registradas nos Arquivos Acásicos, na Memória Cósmica ou na Memória Universal, podendo ser acessadas a qualquer momento. E essas memórias faziam parte de toda a arte, atributo dos tempos modernos e atuais da nova Terra em 3012.

As crianças brincavam de olhar a vida de outrora, tão diferente, porque, já quase no século XXXI, os transeuntes da Terra eram seres de luz, irrepreensíveis seres iluminados, uma parte, pouca, corpo físico, e grande parte espírito. Podiam tomar a forma de gigantes ou de répteis, ou de insetos, ou de animais de pelo, característicos dos séculos anteriores, parte da Criação do Mundo, mas não faziam dengos nem agrados como remotamente. Tudo havia mudado...

A esperança permanecia intrínseca aos seres. Outros atributos, igualmente, eram próprios aos viventes do século XXXI. Poder-se-ia chamar de amor aquele sentimento fundamental para a permanência pacífica, satisfatória e feliz em todo o planeta. A justiça era inerente, porque, em 3012, as leis se tornaram inúteis, já que todos os problemas já haviam sido superados através de séculos e séculos.

Hoje, a paz, a sabedoria, o ser, o estar... a grande felicidade, enfim, se faz dentro de cada vivente na Terra.

Populações inteiras podiam interagir entre si, como se tudo fosse apenas um, todos uma só célula, fundidos pela vertiginosa evolução, pela qual passaram todos, através do tempo decorrido até então.

Tudo era infinito no século XXXI. O tempo não existia. Ele deixara, há muito, de ser contado em horas ou minutos, em dias ou em luas.

Estudos eram desnecessários, porque cada habitante, parte de um todo, já nascia provido do conhecimento acumulado através de toda uma vida planetária. Tudo era verdadeiramente o Nirvana, alcançado naturalmente através de um desenvolvimento da raça, de tal envergadura que as pessoas se pareciam aos deuses, capazes de criar qualquer coisa.

Aquilo que parecia inimaginável em tempos idos, nos séculos XIX, XX, XXV, por exemplo, gradativamente foi se tornando possível conforme o cérebro evoluía dos 10% de sua capacidade (tempo de cérebros privilegiados como os dos grandes estadistas e inventores do passado, cientistas e também artistas, a descobrirem as leis primordiais, usando a Matemática, a Física e outros recursos do seu tempo) até a realidade de 3012, quando o cérebro físico passou a ser usado na sua totalidade. Nesta dimensão da Terra, já não há nenhuma averiguação ou indagação. Tudo é!. Simplesmente é.

Com tudo isso, no entanto, estranhamente, um fato inusitado aconteceu!. De repente, as crianças chegaram com hologramas nas mãos, justamente parte daquela série que tinham acabado de ver no século XX. Elas ficaram enlouquecidas com o espetáculo dos tempos de outrora, completamente movidas, e passaram a desejar aquele comportamento no seu mundo atual também. Queriam dengos e agrados...

Como naquela sociedade os adultos agiam como os índios do descobrimento da América, ou seja, achavam que as crianças tinham sempre razão e que seus menores desejos deveriam ser sempre atendidos, o mesmo aconteceu na tribo avançada do século XXXI: os adultos cederam imediatamente. E, como deuses, criaram uma nova realidade sugerida pelas crianças que, afinal, tinham o olhar profundo e o coração repleto de amor...

E foi esta a primeira vez que se estabeleceu a fusão entre dois mundos separados, com sucesso, no grande continuum espaço-tempo.

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