Tema 192 - MEU TESOURO!
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O TEMPO
Eva Ibrahim

A correria foi intensa, os policiais chegaram se posicionando para todo lado, até sobre os telhados. Algumas pessoas procuraram se abrigar junto aos vãos das paredes, outras corriam em desabalada carreira, queriam distância daquele local. Os comerciantes fecharam ás portas, estava acontecendo um assalto ao banco, naquela rua. Ninguém sabia quantos bandidos estavam dentro da Agência ou se havia feridos. Ouviram vários tiros e gritos; era assustador. Estava instalado o terror na região.

Chegaram mais policiais e ambulâncias com as sirenes ligadas. De repente um homem com as mãos para cima saiu pulando com uma perna só, estava ferido á bala e sangrando muito. O ferimento era na perna esquerda e ele caiu na calçada se contorcendo de dor. Os policiais o agarraram colocando dentro da ambulância, algemado. Aos poucos os clientes foram saindo visivelmente nervosos; algumas mulheres choravam, outras gritavam de pavor. Havia dois bandidos mortos lá dentro, era o que diziam os populares que se aglomeraram em frente ao banco.O ferido foi levado ao Hospital e depois á delegacia onde ficara preso.

Fazia um mês que Josué estava naquele local, entre marginais; era um ladrão de Banco com ficha na polícia. Seus comparsas estavam mortos e ele não sabia o que lhe reservava o futuro. Cometera um erro grave e estava disposto a pagar, mas não era um bandido perigoso como diziam; era um rapaz desiludido e infeliz. Sua mãe fora vê-lo e chorara muito, não esperava aquilo do filho. Foram as más companhias que o levaram ao crime, ele sabia disso. A traição de sua namorada o fizera sair para beber; encontrara aqueles homens que o convidaram á praticar o assalto e ele entrou de gaiato; estava bêbado. Não dera um único tiro, não sabia atirar. Puseram uma arma em sua mão e ele ficou segurando.

Josué ficava sentado em um canto, sua perna doía muito; a ferida estava aberta. Não tinha fome, estava emagrecendo de tristeza; ás vezes algum companheiro vinha falar com ele, saber se precisava de alguma coisa, depois saiam para o pátio e ele ficava só. Se estivesse fora dali seria diagnosticado como sofrendo de "depressão", mas na cadeia quem levaria á sério um bandido depressivo? Perdera seu maior tesouro, a liberdade.

Era um moço alegre, cheio de sonhos e agora estava preso. Fora dispensado do emprego no Posto de gasolina, mas já tinha outro em vista; não era vagabundo. Aquilo era um pesadelo, precisava acordar logo. Ele estava com muito frio, tremia como vara verde e alguém chamou o guarda que o levou á enfermaria, estava com febre; infecção na ferida, disse o médico. Ficou na enfermaria durante oito dias, passou muito mal, depois voltou á cela.

Todos os dias chegavam novos presos, que ficavam amontoados naqueles cubículos. Em uma noite chegou um rapaz que fora pego assaltando uma padaria; também era principiante como Josué. Alceu tinha vinte e cinco anos, estava desempregado, entrou na padaria e resolveu assaltá-la com um revolver de brinquedo, que há dias trazia no bolso; foi pego em flagrante. Foi jogado na cela onde estava Josué. Os dois ficaram amigos, estavam unidos na desgraça; o cárcere. Um ajudava o outro; os dias eram longos, o tempo não passava. Queria sair dali, sua vida estava parada; tinha muito medo de alguns companheiros. Os mais agressivos olhavam feio ou faziam ameaças; procurava evitá-los e mantinha-se calado. Os companheiros de cela diziam que era bobo.

Sua perna melhorou e ele e o amigo passaram a sair da cela para tomar sol com os outros presos. O lugar era pequeno para tantos detentos e alguns estavam doentes; a enfermaria vivia cheia. Eles até gostavam de ficar doentes, pois, aquele era o melhor lugar para estar, havia cama limpa e comida quente. Na cela a comida chegava fria, com um gosto horrível. Josué vivia com azia, muita dor no estômago e não adiantava reclamar. Olhou no espelho e quase desmaiou, estava horrível. Magro, barbudo e sujo; lembrou do aparelho de barba que sua mãe lhe trouxera, iria tomar banho para ver se melhorava um pouco.

Uma assistente social procurou Josué para conversar, dizendo que iria arrumar um advogado para ele. Uma esperança brotou em seu coração; outras pessoas freqüentavam o presídio para levar alento aos detentos. Um pastor da Igreja Evangélica conversou um longo tempo com Josué e lhe deu uma Bíblia, disse que se agarrasse á Deus, ele o ajudaria. O rapaz e o amigo sentavam em um canto do pátio e liam o livro, estavam se aproximando de Deus. A leitura do livro sagrado dava forças aos dois homens. As noites eram longas, a hora não passava, o lugar era terrível; roncos, gemidos, gritos, pessoas chegando, sirenes na rua. Ninguém conseguia dormir, alguns ficavam alucinados por falta de drogas e bebidas; era a abstinência. Parecia um manicômio, queria ser julgado logo para sair dali ou se tornaria um deles.

A situação era insustentável e houve um motim na carceragem. Havia muitos detentos feridos e os homens dos Direitos Humanos apareceram pedindo transferência de presos. Alceu e Josué foram para outra delegacia, tinham bom comportamento. O lugar era bem melhor que o anterior e ali aguardariam o julgamento, também poderiam receber visitas. O advogado que foi indicado pelo poder público estava sempre em contato com eles e disse que até o final do ano seriam julgados, ficaram ansiosos.

Um dia Alceu recebeu a visita de uma morena bonita de grandes olhos negros e a apresentou á Josué, dizendo ser sua irmã. Os dois se olharam de um jeito estranho, parecia que se conheciam há muito tempo. Os três ficaram conversando amigavelmente, a moça era alegre e trazia notícias da família. Os dois homens pediram á ela que trouxesse livros para eles; precisavam passar o tempo e estavam tomando gosto pela leitura.

Ela voltou outras vezes e o coração de Josué parecia sair pela boca a cada visita da moça; estava apaixonado. O amigo aprovava, gostava do companheiro e procurava deixar os dois sozinhos. Havia muitas promessas no ar, ela correspondia ao seu sentimento e dizia que o ajudaria a se recuperar. Seu nome era Clarice e Josué pensava nela o tempo todo, ficava imaginando quando saia para o trabalho, voltava para casa e na cama dormindo. Fechava os olhos e passava a mão em seus cabelos, beijava seus lábios e ficava bem junto dela, depois dormia sonhando com seu amor. O rapaz estava menos triste; queria pagar sua dívida com a sociedade e ser feliz com Clarice.

Os meses passaram depressa e foi marcado o julgamento, fazia um ano que fora preso. A moça estava assistindo ao julgamento de Josué e ele sabia que não seria fácil receber á sentença. Sua pena foi proferida pelo Juiz, oito anos de reclusão em regime fechado; Ele chorou e a moça também; ainda teria pelo menos mais quatro anos de reclusão, depois cumpriria o resto da pena em liberdade. Era muito tempo, será que Clarice o esperaria? Voltou á cela cabisbaixo, o advogado disse que poderia ter sido pior, teria que aceitar. Estava com vinte e oito anos e poderia recomeçar quando saísse; era jovem e saudável.
Foi levado á uma Penitenciária Estadual, aquela seria sua nova morada, o amigo ficara para trás. Chegou deprimido, mas resignado, queria trabalhar, mostrar que não era bandido; cometera um erro e pagaria por isso.

Era um lugar fora da cidade, grande e bem arrumado; os pavilhões separados e as celas para duas pessoas. No pátio havia quadras de jogos e nos fundos uma grande horta, que os detentos cuidavam. Foi levado á uma cela onde estava um homem de meia idade, preso por tráfico de drogas e condenado á oito anos de prisão, penas semelhantes. Antonio era um dos cozinheiros do lugar; recebeu o rapaz com simpatia dizendo que o ajudaria no que precisasse. Em dois anos deixaria á prisão. Era inteligente, trabalhador e não voltaria ao crime, queria abrir uma lanchonete. Josué gostou do homem e lhe contou sua história, abrindo seu coração. Não era bandido, queria provar isto e recomeçar; estava apaixonado.

O rapaz fez amizades ali dentro, um amigo o levou á biblioteca, onde passava horas lendo. Levantavam cedo e iam trabalhar na horta e a tarde era livre para o lazer. Antonio disse para o colega de cela que estavam precisando de um ajudante na cozinha e poderia indicá-lo, se quisesse. Aceitou prontamente, precisava aprender uma profissão. O cozinheiro deu novo rumo á vida de Josué, que trabalhava na cozinha com afinco; encontrara um novo amigo.

Passava a semana esperando o domingo para receber á visita de sua amada, queria notícias de Alceu. Não tinha mais tempo para depressão, vivia sonhando com o dia que saísse dali.
Na penitenciária ele e Clarice podiam ter privacidade e eles se amaram em uma visita íntima; não podiam esperar mais. Josué agora se considerava um homem casado e falava de Clarice como sendo sua mulher. A sua vida ganhara um novo sentido, precisava trabalhar para reduzir á pena e sair dali. O rapaz mergulhou no serviço da cozinha; era prestativo e dedicado. Antonio o tratava como se fosse um filho e dizia que quando saísse iria trabalhar em sua lanchonete. Os dois sonhavam acordados e faziam planos para uma vida nova.

Josué lia muito, era um jeito de viajar para outros lugares, não esquecer do mundo lá fora. Descobrira coisas que nunca imaginara e dizia que voltaria á Escola quando saísse dali. O amigo lhe dava forças, o incentivava e quando Clarice chegava trazendo mais livros ele a abraçava apertado agradecendo á Deus por seu amor. Havia histórias de brigas e tumultos no presídio, mas o rapaz estava trabalhando e não participava dos grupos de desocupados. Antonio era forte e respeitado, portanto, ninguém mexia com seu companheiro e protegido.

O tempo corria, ele estava em paz, sua mãe o visitava constantemente e sua mulher o satisfazia plenamente; eram as pessoas que mais amava no mundo. Quando saísse teria o apoio de ambas, este pensamento o acalentava. Fora promovido á cozinheiro e trabalhava lado a lado com Antonio, agora tinha uma profissão. Queria casar-se logo com Clarice e regularizar á situação, não a queria solteira fora dali, tinha ciúmes da mulher.

Há dois anos estava no presídio e o amigo iria ganhar á liberdade, isto o preocupava muito, tinha Antonio como se fosse um pai. O natal estava próximo e ele receberia o indulto para passar o feriado com a família, era a primeira vez em três anos que sairia á rua. Antonio deixou a prisão três dias antes do indulto de Natal e Josué ficou de procurá-lo lá fora. Clarice estava esperando o rapaz sair e seguiram abraçados até o táxi que os levaria para a casa de Josué. Estavam felizes e aproveitariam ao máximo aqueles dias de liberdade.Foram á Igreja conversar com o Pastor e prometeram voltar para se casar quando Josué saísse da cadeia; queriam a benção de Deus.

Dia dois de janeiro o rapaz estava de volta ao presídio, queria completar sua pena e sair pela porta da frente, como o Antonio, prometera isto á ele. Era o seu quarto ano na cadeia e seria o mais longo e difícil. Muitos não voltam depois de sentir a liberdade novamente, mas não era bandido e voltaria custasse o que custasse.

Em fevereiro sua mulher lhe deu a notícia, estava grávida, ele seria papai. Foi um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo; queria estar com Clarice quando o bebê nascesse, mas não daria o tempo para ele sair da cadeia. Seu maior inimigo era o tempo, o homem chorou nos braços da mulher, não podia se abater faltava pouco para ganhar a liberdade condicional.

Veio um outro rapaz para dividir a cela com ele e ele o recebeu muito bem; iria ajudá-lo como foi ajudado. Os meses passaram depressa e a mulher iria dar á luz á um menino; Josué vivia nervoso, queria notícias. Sua mãe ligou contando que o bebê nascera de madrugada, era lindo e saudável; o homem chorou de alegria. Uma semana depois Clarice levou a criança para conhecer o pai e quando Josué o pegou no colo sentiu-se o homem mais feliz do mundo. Faltava somente três meses para deixar á prisão.

Foram os meses mais longos de sua vida, mas ele conseguiu, sairia na véspera do Natal. Josué tinha uma família que o esperava e aquele seria um dia maravilhoso, não dormiu á noite; ficara esperando o dia amanhecer, tamanha sua ansiedade.

O rapaz foi liberado na hora do almoço; ele pediu á Clarice que o esperasse em casa. Pegou um táxi e em estado de graça seguiu para junto da família, estava muito feliz; era um homem livre. Nunca mais voltaria á prisão, iria trabalhar com Antonio para sustentar sua família e quando Alceu cumprisse a pena iria trabalhar com eles também. Era um novo homem, fizera amigos no lugar mais terrível do mundo; saíra ileso, não era bandido e não se tornara um. O tempo que passou lá dentro serviu para aprender que ser honesto vale a pena, só o trabalho pode dar dignidade ao ser humano.

O tempo ali dentro poderia transformá-lo em um bandido, mas, Josué se manteve um homem de bem. Depende do caráter de cada um e das companhias que lhe são impostas. Ele teve muita sorte, o tempo conspirou a seu favor; estava muito feliz e entrou na casa dizendo: - Reconquistei o "Meu tesouro", a liberdade.

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