Tema 192 - MEU TESOURO!
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ALEF
Maria Luísa Rocha

Teve uma infância feliz, cercada de mimos e cuidados. Sua saúde delicada preocupava a mãe que se desdobrava fazendo sopas e mingaus bem reforçados diariamente. Era tudo tão saboroso que a menina comia com boa vontade. Tomava colheradas de vitaminas, evitava ventos e friagens, quase não saía.

Apesar de tanto afeto, não se tornou uma criança mimada; ao contrário, era tranqüila, curiosa e interessada por tudo que a cercava. Quando ganhou um boneco de borracha, vestido com roupa vermelha, um boné branco, sentiu uma imensa alegria e passou a carregar o brinquedo para aonde fosse. Batizou-o Zezé. Fez dele seu confidente, quase um irmão mais velho. Às vezes ralhava com ele, mas somente em raros momentos de frustração.

A menina amadureceu e virou uma mocinha feinha, cheia de espinhas, pernas finas e pouco peito. Mesmo assim, começou a se encantar com festas e saídas e guardou Zezé no alto do armário do quarto. Que lá permaneceu por uns vinte anos.

Só saiu de lá quando a mulher se casou e o encontrou por acaso ao preparar suas coisas para a nova vida. O boneco estava meio desbotado, ela viu tristeza nos olhos dele e sentiu uma saudade esquisita, cheia de culpa. Levou-o para a casa, colocou-o sobre uma cômoda no quarto do casal. O marido achou aquilo infantil, mas fingiu que entendia e desconversou.

Anos depois, Zezé foi parar nos braços da filha da mulher. A mãe olhava as brincadeiras da criança com nostalgia e orgulho. Zezé já era da família mesmo...

Os anos passavam, contas a pagar, correria para o trabalho, lições de escola dos filhos, e a cozinha, ah, esta interminável sucessão de preparos, temperos, louças e talheres pedindo água e sabão sem trégua. O tempo sumiu e no seu lugar apareceram cabelos brancos, rugas e azedume. O calor do sol era insuportável. Passarinhos irritavam seus ouvidos desafinados. Seus olhos embaçados só enxergavam a poeira dos móveis e a gordura das panelas. O coração começou a falhar, uma espécie de angina demonstrava a dureza do sangue que lhe percorria o corpo já disforme.

Quando a filha começou a namorar, a mulher jogou Zezé no alto do armário do banheiro.

Mais vinte anos se passaram. Cheia de dores, a coluna encurvada, quase não saía de casa. Morava sozinha, não tinha mais parentes próximos, amigos não cultivou nenhum.

Numa manhã de dezembro, às vésperas do Natal, saiu para fazer umas compras no bairro, carregando uma sacola de pano. Quando estava no balcão da padaria aguardando ser atendida, deparou-se com um impresso com a foto de uma linda mocinha abraçada a um cão vira-lata esquelético. Pegou o papel e começou a ler, fascinada com a expressão da menina. Parecia uma fada... Era um pedido de ajuda financeira para socorrer aquele cão. Ele estivera preso por duas semanas em um tronco de árvore, em frente a um bar, quase sufocado por uma coleira extremamente apertada. Neste tempo, sofrendo frio, fome e sede, esteve entregue à sanha dos freqüentadores do bar que se divertiam atirando pedras e queimando cigarros no magro corpo do animalzinho. Duas semanas! Um calvário de quinze dias... Quando já estava quase morto, um anjo por ali passou e com a ajuda de um alicate, soltou o animal e o levou para ser tratado. Teria que tomar muitos remédios e realizar uma cirurgia para tratar de uma fratura que o impedia de andar. Tudo isto custaria muito caro e o jeito foi pedir auxílio de todos os modos possíveis. A moça apelidou-o de O Cão da Estrada. E a ajuda começou a chegar de mansinho.

A mulher voltou para casa com um estranho brilho nos olhos. Pegou na gaveta dois anéis valiosos do tempo de casada, um brinco de ouro e uns trocados que ajuntara para alguma emergência. Foi até o telefone e discou o número que estava no cartaz do cão. A mocinha atendeu, até a voz era angelical. Fada ou anjo, é tudo a mesma coisa.

Combinaram de se encontrar no dia seguinte para entregar as jóias e o dinheiro que iriam possibilitar o tratamento. A fada agradeceu muito e pediu-lhe para ajudar a conseguir um dono para o cão, quando se recuperasse. A mulher, meio resmungando, apenas lhe disse que precisava urgente dar-lhe um nome. Que coisa estranha esta de cão da estrada, parece coisa de lobisomem... Credo em cruz!

À noite, a velha mulher tomou uma sopa de agrião e sentou-se para rezar o terço. De repente, interrompeu a ladainha, foi até o banheiro, pegou um banco e tirou do alto do armário um Zezé todo estremecido, quase mofado. Limpou-o com a toalha de biquinhos azuis de crochê e em seguida borrifou um perfume adocicado nas pernas enrugadas.

Ficou com ele no colo até altas horas da noite, enrolado numa mantinha, sussurando-lhe inúmeras vezes o mesmo segredo: nós vamos ganhar um hóspede, um amigo de verdade.

E, finalmente, depois de tantos e tantos anos, Zezé dormiu sossegado, roncando suavemente, antecipando em sonhos as incríveis brincadeiras que em breve teria com Alef...

Dedico este texto à Fabrícia, a fada de Ibirité.

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