Tema 192 - MEU TESOURO!
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O TESOURO DESCOBERTO
Suzana Fagundes

Quando criança, um tesouro me foi mostrado em algum filme, revista ou livro: as pérolas, os diamantes, as águas marinhas, esmeraldas, ouro, prata em algum baú descoberto no fundo do mar, em um qualquer navio pirata, ancorado para sempre no fundo do mar.

Quando criança, também, me foi passada a ideia de tesouro no longínquo oriente das arábias, dos reis e rainhas, dos haréns, das fortunas acumuladas sobre os camelos no deserto, dentro dos palácios, com paredes cravejadas de pedras preciosas. Também vi associações com xeiques e marajás. Eu gostava do turbante dos marajás com seu rubi de muitos quilates, cobrindo a fronte daquelas figuras envoltas em panos, um pouco para se protegerem do sol escaldante do deserto; outro pouco, porque era assim que se vestiam lá no oriente sob os coqueiros e nos oásis encontrados nas areias.

Em livros infantis, aprendi sobre os gênios da lâmpada maravilhosa. Quando alguém esfregava as mãos na lâmpada, qualquer coisa poderia sair dali de dentro: desde uma maçã para matar a fome do seu amo, até tesouros incalculáveis compostos de jóias, pertences luxuosos, todos cravejados com pedras preciosas. Estas visões me faziam encantar, maravilhar, porque lá onde eu estava não era o deserto: os camelos eram os bois que meu pai criava; o deserto, hectares de capim para o gado comer; os oásis eram os açudes que meu pai perfurava na terra, água para o gado beber.

Meu irmão mais velho tinha um livro chamado Simbad, o marujo. Nunca conheci a história do Simbad. Para mim, muito criança, bastavam as ilustrações do livro. O navio cheio de velas e cordas, madeira e tripulação. Aqueles homens vestindo calças pelos joelhos, trabalhando nas velas e no convés com botas até o joelho. Assim não se molhariam tanto. Para mim, bastavam o leme, os instrumentos náuticos, aqueles chapéus colocados às avessas, para estancar o sol que batia no navio. Bastava, isto sim, aquele quarto trancado a sete chaves, onde ficava guardado o tesouro no navio. Na verdade, toda a tripulação era de ladrões. Por isso, navegavam até um porto, vasculhavam e roubavam as casas, e assim o seu tesouro era acumulado em maravilhosas peças de joalheria, ricos pratos e travessas em ouro e prata, cálices, talheres, bules, jarros, tudo da mais fina ourivesaria. Quando alguém, no livro de Simbad, olhava por uma fresta de tábua, para dentro do quarto do tesouro, então poder-se-ia ver brilhar o tesouro guardado ali, reluzente e farto.

Meu outro irmão, o mais novo, tinha um disquinho verde, que a gente ouvia quase todos os dias à noite, quando não mais brincávamos na rua ou no quintal: Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Ele foi o porta-voz do que era a riqueza, do que era um grande tesouro. Ali Babá conseguiu salvar o tesouro de uma cidade que havia sido roubada pelos homens do navio pirata. O tesouro de Ali Babá ficava numa caverna, e à menor fresta de luz que entrasse, fazia brilhar o mais lindo tesouro.

- Abra-te Sésamo! - Era a palavra mágica para que a porta da gruta se abrisse.

Eram quarenta ladrões. Mas Ali Babá os venceu a todos, com um toque de afinada inteligência, decorando a senha para a entrada na caverna do tesouro. Lembro-me de que Ali Babá venceu os ladrões também com um relance de suma inteligência. E inteligente mais ainda ficou, quando assim terminou a história:

- Quem rouba ladrão, tem cem anos de perdão.

Mas como éramos quatro irmãos - eu, minha irmã e os dois meninos -, então, havia quatro disquinhos, um para cada um. A cada rodada do disquinho, viajávamos para bem longe. Beirute, talvez, ou Matusalém, quem sabe para Ilhas Canárias e Oriente adentro: Pérsia, Turquia... Passávamos sempre em frente ao Taj Mahal. A imaginação fervia neste momento, porque pensávamos que aquela era a maior prova de amor do mundo que se podia dar à mulher amada: um mausoléu com jardins e piscinas, todo branco, tão distante da fazenda do meu pai ou da pequena cidade onde morávamos. Eu me via tomada por tanto encantamento, quando, em seguida, os outros tesouros eram revelados em outros disquinhos... Cabia a mim o disquinho A história da Baratinha. Ela queria se casar. Cantava e cantava, e dizia que tinha dinheiro na caixinha. Este era o seu tesouro. Uma história que tinha um fim muito trágico. Nem quero falar sobre isto aqui. Mas, na identificação com a personagem, vi-me mais tarde, quando cresci, na mesma situação da Baratinha casadoira: com um dote na caixinha, prenunciando também um final nada feliz. Meu casamento, em pouco tempo, ficou sem dote e sem o senhor Ratão, que mergulhou na panela de feijão quente e se acabou.

O irmão que tinha o livro do Ali Babá, tornou-se, mais tarde, um homem muito rico, cujo tesouro se estampava em um gado avermelhado, raro, indiano, que ele criava. Verdadeiro tesouro herdado de seu avô. Hoje, entendo o que é a semeadura: o nascermos e vivermos nossa infância e adolescência, e vermos estas verdadeiras sementes férteis, se transformarem em árvores frutíferas e frondosas, proporcionais à imagem que cresceu na infância, principalmente a imagem dos sonhos sonhados. Porque, quando nos reuníamos na sala à noite, sobre a mesa de jantar, a pequena vitrola e os sonhos se instalando em cada subconsciente, em cada cabecinha das crianças que éramos. O irmão mais novo, quando cresceu, trocou o disquinho do Ali Babá, pelas biografias de Henry Ford e Rockefeller, pessoas de muito sucesso. Assim se justificou que ele se desse muito bem na vida. Foi só sonhar, ler os livros, e se deixar enriquecer como eram as personagens dos livros, que o acompanharam durante o seu crescimento. A leitura se transforma em fluídos que se concretizam na vida real. São as quimeras do passado, se personificando em tesouros, em páginas ricas de vida e história para cada um. Um reflexo agrandado dos primeiros passos perante a vida, das primeiras visões, e da realidade.

Custei muito para descobrir o meu próprio tesouro. Pensava que ele estava fora, na vida à minha frente, no futuro, talvez, e a busca se estendeu por toda uma existência: por décadas, por centenas de dias intermináveis, redutos de minhas expectativas, do meu desejo de me encontrar. Mas, onde estava o que eu procurava? A fortuna não veio. O dinheiro na caixinha sempre representou muito pouco e jamais saciou todos os meus desejos durante a vida. Em vez de esmeraldas, eram anéis feitos de vidro: reluzentes, mas falsos. Encarnavam o ensaio de vida, não a verdadeira vida. E buscar era mister. Eu sabia que encontraria as respostas num dia qualquer, em qualquer ponto ou esquina, em meio a tantos sofrimentos vivenciados ininterruptamente.

Viver sem tesouro material é uma coisa. Mas, sobreviver em déficit de humanidade, sofrer as agruras da vida, como se jamais eu pudesse gritar Abre-te Sésamo! e ver o tesouro ali, presente, para mim, só meu e de mais ninguém... Ah!. Só eu não sabia que esta era também uma fantasia gerada pelas frustrações e enganos durante toda uma vida. E eu já não era aquela criança na fazenda do meu pai, na cozinha da minha mãe, enquanto ela torrava no fogão à lenha o café que era colhido e trazido da fazenda. Eu já não era a inocente criança sobre a grama, sob o sol, com os pensamentos confusos. Crescer era difícil demais. E a pergunta:

- Por que continuar a ser a infeliz Baratinha, que ficou sozinha a vida inteira, sem noivo, perambulando à procura, à procura. de não se saber o quê, a felicidade talvez, nua e cruamente falando?

É. onde eu poderia encontrar este ser vivente chamado Felicidade? Em momentos esparsos? Muito pouco... Por onde estender meus braços, mãos, meu corpo? Como fazer para agarrar este ser abstrato, espiritual, tão diferente da matéria?

Um dia ouvi falar da Física Quântica,onde as possibilidades e probabilidades são infinitas. As mais impossíveis coisas são possíveis. Ouvi falar do átomo, da ciência e de cientistas. Me acalmei um pouco... e esta foi a primeira jóia que tirei do baú que era a minha vida toda. Todo o meu tesouro. Ele estava irrepreensivelmente ali, dentro de mim. Enterrado desde sempre, farto, completo, à minha disposição todo o tempo.

Mal sabia eu que a entidade cabível dentro de mim era, além das pérolas, das esmeraldas, das bandejas de ouro, do sonho ou da quimera, algo simplesmente real, nada antes imaginado por mim.
Passei a sentir, na própria carne, o sangue correndo nas veias, aqueles milhares de rubis se acotovelando nas artérias e nos vasos cardiovasculares do meu corpo. Passei a notar que recheando o meu corpo inteiro, estava eu ali desperta, em forma da poesia, da prosa que escrevo sem pensar, exatamente o grande e misterioso Eu dentro de mim e não fora. Foi necessário viver quase um século para que eu me lembrasse do que eu trouxe, ainda feto, de outras vivências do passado cósmico ao qual um dia pertenci, antes do meu nascimento.

Hoje não tenho mais perguntas ou dúvidas, ou ânsias ou qualquer questionamento. Apenas sou! Eu: o próprio tesouro cravado dentro do meu corpo físico, não sei se alma ou espírito. Para mim, ele é o meu tesouro recém descoberto.

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