Tema 192 - MEU TESOURO!
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O ÚLTIMO ADEUS
Valéria Vanda de Xavier Nunes

Era domingo de páscoa. A família tinha saboreado um belo almoço preparado pela avó querida. Alguns já tinha se recolhido em seus quartos e faziam a sesta. Outros permaneciam na sala a conversar, dar risadas e contar histórias engraçadas que aconteciam com a família.

Em pé, em frente à porta, Joana espreitava a filhinha que se debruçava sobre o avô adormecido que naquele momento tirava o seu cochilo. Dali a poucos minutos, ela e sua família retornariam para casa de onde vieram a fim de passar a páscoa com os avós - o que era uma tradição na família. Joana ouvia a voz sussurrada de sua filha.

A menina falava baixinho enquanto roçava a sua face lisinha como um pêssego maduro nas bochechas - envelhecidas pelo tempo - do seu avô querido. Beijava-lhe também o rosto e continuava falando baixinho para não acordá-lo.

Chau vô!... Chau vô!...

Aquela cena que mostrava o pai dormindo o sono dos justos, sendo beijado por uma de suas filhas, jamais seria esquecida por Joana. Elas saíram do quarto devagarzinho sem fazerem o mínimo barulho.

A viagem de volta para casa era sempre triste para Joana que sentia muita falta dos pais e dos irmãos. Casara-se muito cedo e por isso, não perdia nunca as oportunidades de estar com eles. Sempre se reuniam nos feriados e nas datas comemorativas, como a páscoa, o natal e os aniversários. Joana não conseguia explicar por que se sentia mais triste do que nunca naquela volta pra casa. Não era a tristeza normal de quando voltava de alguma comemoração na casa dos pais. Não. Aquela angústia e tristeza eram diferentes. Um sentimento enorme de perda apertava o seu coração de uma maneira nunca sentida. Nada a fez ficar alegre naquela viagem de volta; nem as músicas que se ouviam no carro, nem as brincadeiras das filhas. O seu coração continuou apertado por muito tempo ainda. Chegou ao ponto de seu marido e suas filhas perceberem e perguntarem, por que você está tão calada e triste hoje, mamãe? E Joana, tentando disfarçar enxugava uma lágrima que teimava em cair por trás dos óculos escuros e respondia, não é nada, não se preocupem, são apenas saudades. Mas a tristeza de Joana era tão grande que acabou por contaminar a todos e o resto da viagem transcorreu no mais completo silêncio.

Deitada no sofá da sala, Joana se recorda de tudo isso e o seu coração se aperta novamente. Como esquecer aquela memorável tarde! Ela estava deitava neste mesmo sofá, exatamente como agora. Decidira que não sairia àquela tarde, pois algo em seu peito angustiado lhe pedia para não sair de casa, só sairia para pegar as crianças na escola às cinco horas. Desde a hora do almoço que Joana não se sentia bem. Estava inquieta, uma angústia no peito fez com que ficasse recolhida em sua casa. Eram quatro horas da tarde. O telefone tocou. O coração deu um salto no peito. Sua intuição lhe dizia que não seriam boas notícias. Era sua irmã. Oi, Joana, tudo bem? Estranhou. Aquela sua irmã quase nunca ligava. "Não sabes o que aconteceu. Papai saiu de casa desde cedo e ainda não voltou. Já procuramos por todo lugar e não o encontramos. Disse a mamãe que ia ao supermercado e que logo voltaria e até agora nada. Imagina a agonia de mamãe e de todos nós."

Joana se desespera. Fica nervosa. Como não o encontraram? Então não procuraram direito. Já procuraram nos hospitais? Joana continua fazendo mil perguntas para a irmã que, de repente, disse uma frase que a deixara paralisada e a fez compreender tudo. "Olha Joana, cai na real, arruma tudo por aí e vem pra cá imediatamente". Foi esta a frase.

"Cai na real."

Estas três palavras tiveram o poder de aniquilar Joana como se fosse um tiro bem no meio do peito. Não precisava dizer mais nada. Nada de eufemismos. Estava tudo ali, claramente naquelas três palavrinhas - cai na real. Joana gelou dos pés a cabeça. Sua irmã já havia desligado o telefone e ela ficou completamente arrasada e sem ação por vários minutos. Completamente atordoada, não queria acreditar naquilo. Não podia ser. Não estava preparada para aquilo. Minutos após o choque, pôs-se em ação. Era preciso reagir. Não chorar. Lágrimas significam tragédia. E nada havia acontecido ainda. Pensava Joana, enquanto tentava com mãos trêmulas ligar para o marido e relatar o que sabia dos fatos. Em poucos minutos ele chegou. Acalmou-a e ajudou-a nos preparativos para a viagem.

Completamente desnorteada, Joana agia sem vontade própria e, como um robô, procurava fazer as malas de todos. Não sabia o que colocava ali dentro. Tudo era feito aleatoriamente. Passaram na escola e pegaram as crianças que não entendiam nada. Por que vamos viajar assim, às pressas? O que aconteceu? Pra casa de vovó? Aconteceu alguma coisa com eles? Foi com vovó ou foi com vovô? As perguntas das crianças se sucediam, mas Joana permanecia calada. Não sabia o que dizer para elas, se nem ela mesma tinha certeza de nada. Não queria acreditar no pior. Em seu coração apertado pela dor, ainda restava a esperança de estar enganada, de sua irmã também ter se enganado. É claro que tudo isto é um engano, é um pesadelo! Com certeza, quando chegassem, seu pai estaria lhe esperando na calçada do prédio. Claro! Ele sempre fez isso! Como sempre, iria abraçá-la e ia beijar as netas. Ele ia estar lá sim. Joana precisava mais do que nunca ter certeza disso.

Durante todo o trajeto, mil cenas se desenrolavam em sua mente. Passava um filme, em preto e branco, de tudo que viveu com seu pai. Ele tinha que estar lá. Ele não podia deixá-los ainda. Todos ainda precisavam dele.

Enfim, a viagem acabou. Joana olha para todos os lados. Nada de seu pai nos jardins do prédio. As crianças estão assustadas. Também procuram o avô. Cadê vovô? Por que ele não nos esperou aqui, como sempre? Joana não lhes responde nada. Não espera para tirar as malas do carro. Não espera por suas filhas nem por seu marido. Joana desce do carro com o coração sangrando e querendo saltar do peito. Entra no elevador que demora mil anos até chegar ao quinto andar. Silêncio nos corredores. Porta aberta no apartamento. Vê a sua mãe que chora, e no sofá da sala, é consolada pelas amigas. Não se dirige a ela. Nenhum irmão. Nenhuma irmã à vista. A verdade se mostra aterradora. Joana entende tudo. A esperança que trazia dentro de si, acha uma brecha, e escapa, levanta voo, escapa para o infinito, como deve ter escapado a alma de seu velho pai naquele dia. Quem sabe não se encontraram as duas, esperança e alma, entrelaçadas no além.

Joana sai correndo e vai direto para o quarto dele. Agarra um de seus gorrinhos, aperta-o de encontro ao peito que parece que vai explodir de tanta dor e finalmente... chora. Chora um pranto que estava contido, preso, guardado e ávido para se soltar do peito. Soluça desesperadamente. Esvazia toda a dor que vinha guardando e derrama também todas as lágrimas que vinha reprimindo até aquele momento. Joana passou horas ali. Desconsolada, triste, sozinha. Ninguém está preparado para essa dor, e a dor que ela sentia parecia que não ia ter mais fim. Seu pai a havia deixado. Era como um tesouro que lhe havia sido roubado.Tinha ido embora.

E ela tinha que encontrar forças para o reencontro que não podia ser adiado. A despedida era inevitável.

Ele estava ali. Bonito. Bem vestido. Perfumado.

Quanta saudade! Quantas palavras ainda não ditas! Quantos conselhos ainda faltavam ser ouvidos! Quanto carinho ficou por fazer.

Na boca um ar de riso. Era como se finalmente ele tivesse encontrado o que procurava. Era seu pai que estava ali. Parecia feliz. O seu semblante era sim, de felicidade.

Era a última vez que via seu pai. Aquela cena jamais sairia de sua mente. Ele dormia sim, mas, ai de nós, não era mais o sono dos justos. Era o sono dos mortos.

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