Tema 192 - MEU TESOURO!
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PELOS, POR QUE TÊ-LOS?
Victor Carvalho

Antônio sempre foi um cara simples. Sem mais, nem menos. Praticamente o estereótipo hollywoodiano da mediocridade americana. Funcionário público desde que se entendia por gente, no seu setor todos o consideravam um cidadão simpático, boa pessoa. Antônio não fedia, nem cheirava. E em casa a história era a mesma. Ele sempre foi um bom pai e um marido atencioso. Mas ficava por aí, sem maiores surpresas e enaltecimentos por parte dos seus estimados familiares.

Como de praxe, todas os dias Antônio seguia seu ritual. Levantava-se ao cantar do galo, tomava um banho frio, dava cabo da barba ainda rala, passava o pente nos cabelos já ralos, tomava um café forte, observava silenciosamente suas filhas dormirem por um minuto, beijava o rosto sonado de sua mulher, entrava no Santana 94 e saia tranquilamente pela Braz Leme. Até o trabalho eram pouco mais de oito quilômetros, apreciados ao som do mesmo jornal, da mesma rádio AM.

Mas não naquele dia. Não naquela amanhã.

Especificamente naquela quarta-feira, as coisas mudaram. Antônio se levantou quinze minutos atrasados em meio a resmungões e palavras de baixo calão, trocou o banho por uma água no rosto e dois tapas na cara, deixou a barba por fazer e o cabelo por pentear, deu um gole desmerecedor no café forte e cuspiu fora, passou espalhafatosamente batido pelo quarto das filhas, deu um tchau de longe e pela metade para mulher e, batendo o pé, entrou no Santana 94.

E lá ficou, por longos três minutos, em meio a devaneios aparentemente intermináveis. Só Antônio sabia o que estava passando e conhecia o martírio que era ser o que é. Ali, beirando os cinquenta anos, sem ter levado adiante o jovem sonho de ser poeta, sem ter conhecido seus maiores ídolos, sem ter sido um homem para sempre lembrado. Só Antônio sabia qual desses vários motivos era o responsável pela sua angústia. Só Antônio.

Até que, já cansado do marasmo daquela quarta-feira, Antônio concluiu consigo mesmo "Maldito pelo encravado que acaba com o meu dia", ligou o velho Santana e foi-se pela Braz Leme.

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