Tema 194 - EXCLUSIVIDADE
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UMA NOITE ENTRE AS PEDRAS
Araceli Sobreira Benevides

"O que faz dois seres irremediavelmente diferentes abrir os olhos ao mesmo tempo e só encontrar os negros das pupilas dilatadas no átimo entre um sonho e outro, entre uma respiração e outra? Talvez a exclusividade do tempo!

Zila olhou para os olhos que estavam abertos a sua frente, quase sem piscar. Agüentou o quanto pôde, virou-se de lado, enquanto puxava para si as mãos largas de Ferreira. Ele sorriu satisfeito, colocou mãos no bico dos seios da mulher sob o tecido fino da camisola e voltou a dormir, respirando pausadamente. O quarto da casa dela cheirava a incenso. A noite não tinha acabado ainda.

Zila - a mulher daquela noite - fechou-se em um sono leve, tentando lembrar-se da noite azul escura que cobria a praia de Iracema quando se viu nos braços de Ferreira. Eles haviam apenas ido ver o pôr-do-sol e se deixaram envolver pela noite atrevida.

A praia estava como sempre, repleta de homens, mulheres e crianças de todas as partes do país e do mundo. O ir e vir para a Ponte Metálica começava cedo. Às quatro da tarde já não se achava um bom lugar para se sentar e esperar o pôr-do-sol inebriante, abençoado pelos raios alaranjados ou roseados que mudavam a cor do horizonte. Em noite de lua cheia - como era aquela, a Ponte ficava apinhada de gente. Todos romantizados pela beleza rústica permitida pelo vento forte, pelo cheiro de sal na pele morena e pelos zunzuns de risadas, aplausos, acordes dos violões diversos a ecoar de todas as partes ao longo da Ponte.

Essa era uma época já perdida para os olhos de hoje. Naquele ano, a Ponte não havia sido reformada ainda, quem por ela andasse, tinha por obrigação olhar para baixo e desviar-se dos enormes buracos. Bem abaixo dos ferros retorcidos, enferrujados, viam-se o mar e as pedras. Em algumas vezes, meninos corajosos que se enganchavam na estrutura da velha ponte para pegar as ondas no ponto mais perigoso da praia.

Zila não passava um domingo sem pôr-do-sol. Nas várias visitas, a jovem, que despontava em feminilidade exagerada mostrada nas pernas fortes, deixadas à vista pelos shortinhos curtos e blusas de seda esvoaçantes, no maior estilo hippie, andava com sandálias rasteiras, sorrindo a todos os conhecidos. Nas costas, o amigo fiel: o violão herdado da mãe.

Era pisar na Ponte e:

- Toca aí, Zila...aquela que a gente gosta...

- Que vai ser hoje, pessoal?

- Na beira mar, entre luzes que se escondem, só sorrisos me respondem...

E Zila na voz mais suave da noite, dedilhava o violão, sorrindo matreiramente, olhando o céu já despontando no azul-marinho quase negro:

- que eu me perco de você...

A turma toda já estava lá. Alguns casais abraçavam-se para deixar a roda mais animada. Quem não namorava, deixava-se embalar encostando-se confortavelmente um no outro. O final da noite era no Estoril. Zila não bebia, mas gostava de uma ou duas caipinhas - "para animar". Quando cansava, passava o violão pro Carlão, companheiro de aventura pelas noites. Gostava de ir ver o brilho da lua no laguinho que se formava logo atrás do restaurante, quando dava, ia pelo beco do lado. Com certa agilidade, chegava-se às pedras e, na maré baixa, ficava entretida ouvindo de longe, seu amigo cantando no Bar.

- A lua não tá pra peixe.

Zila assustou-se ao ver o homem que chegara às pedras tão rápido e silenciosamente.

- Você veio pescar raio de lua?

Ambos riram e ela ficou olhando para o mar.

- É tão lindo, tão profundo, chega a dar medo.

- Por isso nos instiga...

O homem aproximou-se um pouco mais de Zila e se apresentou finalmente:

- Prazer, Ferreira.

- Prazer, Zila.

- Você é do movimento? Ela perguntou rindo com os olhos.

- Movimento?

- Sim, do movimento estudantil que está reunido no Estoril?

- Hã...não, eu não sou do movimento. Sou muito parado.

O homem, francamente, abrindo bem a boca, mostrando dentes brancos, alinhados.

- Você é?

- Eu? Francamente? Nunca, nunquinha. Sou da poesia, do pensar, da música...esse povo aí é muito louco pra mim. Novo silêncio. Ele admirando as pernas dela maliciosamente. Ela meio alheia, meio presente.

- Você é militar pra ter esse nome, Ferreira?

- Não, sou só filho, e o nome é João Ferreira, o mesmo nome de meu pai. Deixei só Ferreira. Ele é militar, sargento aposentado - disse assim, meio baixinho, meio desapontado. Ela achou um quê de interessante da voz dele. Soava algo de dor.

- O meu também era militar, hoje vive de histórias.

- O meu de culpa. Mais uma vez os dois se olhavam fixamente. Zila parou de rir, já se mostrando impaciente, mudou a posição das pernas.

- O que você diria se eu lhe desse um beijo?

- Pra beijar precisa dizer algo? Ela o provocara. Porém, de um lance, ficou em pé, andou pelas pedras, como se fosse voltar para o bar.

Ele a seguiu, contornando o laguinho. Encontraram-se no muro baixo que abraçava a areia. Olharam-se de novo. A moça sempre rindo.

- Tá fugindo?

- Quem sabe?

- Gosta de gato e rato?

"Tão perto assim, como ele é alto" - pensou Zila já sentindo um arrepiozinho na base da espinha. O burburinho do bar chegava ao ouvido dos dois, mais gente havia chegado. A lua agora estava em nove horas, bem no alto, sozinha, alcançando meio mar com sua cópia logo abaixo, tremendo na água escura.

- Aquele violão é seu, não é?

- Você ouviu?

- Não, apenas vi, na Ponte. Meus amigos ainda estão lá. Vim ver para onde você ia.

- Tava me seguindo! E o gesto dela de voltar para as pedras o surpreendeu. Em seu entender, Ferreira pensou que ela voltaria ao bar.

- Eles dizem que você é cigana.

- Só um pouco. O outro lado não deixa. O lado do pai, você entende, né? - Riu de novo, pulando uma pedra enorme.

- Você lê mão? Ferreira também pulou, pensando: "Se eu cair, vai ser um caos!"

- A não, tentei tarô. Uma amiga meu deu de presente e quando coloquei as cartas, veio a carta da morte. Dois dias depois o pai dela morreu. Fiquei assustada e guardei as cartas. Amarrei num lenço vermelho e guardei numa caixa bem no fundo do meu guarda-roupa, para eu me esquecer dele. Só que dizem que ele está lá, pegando minha energia - A idéia veio assim, transbordando em palavras e quando Zila viu, estava falando rápido, correndo, sem respirar entre as palavras - Então, sou assim uma cigana fajuta...

De novo os dois estavam do outro lado do laguinho. Mas não se sentaram, em pé, fitaram o mar e depois o bar. Lá dentro alguém berrava algo contra o governo. Parecia discurso.

- Vamos, embora? Ferreira perguntou, de repente.

Sem nada dizer, foram pulando as pedras até chegar na areia. Não entraram no Estoril. Estava um rebuliço, puseram mais mesas e parecia que todos os estudantes da cidade chegaram lá na mesma hora. Dirigiram-se ao beco, pela prainha, à esquerda. Um coqueiro fazia uma sombra enorme no meio do caminho e quase chegando à rua principal, ele a segurou pelo braço, puxando-a para si.

"Como ela é pequena!" Ferreira sentiu o cheiro da pele da mulher cigana que passara por ele na Ponte. Ele estava deitado com os pés estendidos em direção à lua quando alguém pulou por cima de seus joelhos. Ele viu longas pernas torneadas, um short jeans, um violão pendurado nas costas, os cabelos voando no ar. Não teve como não segui-la. Deixou de lado os amigos e lá se foi até o laguinho onde a jovem estava.

Agora, tinha-na em seus braços, uma das mãos em seus seios. Lá fora alguém gritava "fora, alguma coisa". A última imagem a se lembrar fora a lua refletindo todo seu poder sob o mar do Estoril. A data: julho de 1988.

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