TEM GENTE? |
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Claudio Alecrim |
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Mal começara e já corria para o fim. O bife convidava, cercado por batatas, tomates vermelhos como rubi, folhas de rúcula e caprichosamente chuviscado de orégão e manjericão. Para beber, um vinho encorpado que escolhi aleatoriamente no cardápio feito de couro fino. Tudo era de bom gosto e sofisticadamente delicioso. Amolei o garfo na faca para atacar avidamente a comida quando uma dor aguda atravessou-me a barriga como uma lança. Olhei em volta, paralisado pelo sofrimento, enquanto uma algaravia feliz enchia o lugar com anjos famintos sob arpejos vindos do inferno. Levantei como um soldado que presta continência. O garçom se aproximou... - Algum problema, senhor? - Não... Quero dizer... - A comida não está boa? - Ótima! - Vejo que o senhor mal tocou no prato... - É que me lembrei de uma coisa importante... Nesse momento a dor apertou meu abdômen como um cinto com a força de dez homens. Minha cabeça, num reflexo, girou e minhas mãos abraçaram meu corpo involuntariamente... - O senhor está sentindo alguma coisa? - Preciso ir ao banheiro... O infeliz apontou a direção com escárnio estampado na cara... Como quem se despede da mulher amada, passei meus olhos tristes pelo meu prato e corri para o banheiro. Entre os dois era impossível decifrar qual era o dos homens. Grafismos misturavam-se enigmáticos. Escolhi na sorte e entrei desesperado. Tranquei-me numa cabine e esperei até que fosse perdoado por todos os pecados e profanações eventuais. Prometi que me comportaria como um homem civilizado diante de um prato de comida. Alguém entrou justo quando me preparava para sair... Escutei vozes femininas... - Hoje eu pego aquele safado! Olhei pela fresta da porta e vi as duas diante do espelho retocando a maquiagem... - Você está sentido? - Meu Deus! Deve ter um cadáver nesse banheiro... - Parece que tem alguém ali... Fiquei inerte e economizei o oxigênio o mais que pude para não emitir qualquer som... - Vamos sair daqui logo... - Não! - Como você aguenta? - Vamos esperar pra ver quem é... Elas cochichavam, mas podia ouvir claramente tão sórdido e desumano plano. O que faço? Pensei bem baixinho. - Eu tive uma idéia! - O quê? - Vamos para fora e esperamos a pessoa sair... - Combinado! As duas saíram e então pude respirar aliviado. Mas estava irremediavelmente preso ao banheiro. Como sairia com as duas a me espreitar? Seria um escândalo a considerar que estava no banheiro de mulheres para piorar minha situação. Não havia janelas e nem dutos de ventilação por onde pudesse escapar. E se tentasse escapar o garçom chamaria a polícia... Escutei a porta abrir novamente e me enfiei noutra cabine. - O senhor precisa verificar! Elas trouxeram o dono do restaurante, veio-me a idéia como um raio certeiro que não me matou por sorte. - As senhoras têm certeza? - Alguém deve ter passado mal... - O cheiro esta horrível mesmo - concordou o homem - Só pode ser alguém morto! Um cheiro por pior que seja não dura tanto tempo... Escutei os passos na direção da cabine. Meu coração correu em disparada. Senti o suor frio se espalhar por todo o meu corpo. - Meu Deus! - Não há ninguém! - Olhe aquilo! - Não pode ser gente! - Senhoras, vou isolar a área... Nesse momento entra outra pessoa... - Vocês viram o cliente da mesa cinco? Mostrei os banheiros e ele sumiu... - Será que fugiu sem pagar a conta? - indagou o gerente ou dono do lugar. - Nada! É ele o culpado por isso! - Nunca vi coisa igual... - Ainda bem que ele nem tocou na comida... Foi comida de outro restaurante... - Como podemos ter certeza? - perguntou uma das mulheres. - Como assim, senhora? - Se o seu restaurante não faz isso com as pessoas... - A senhora está insinuando que nossa cozinha não é segura? - Como vou saber... O tal gerente ou sei lá o que era, ordenou que o garçom fosse buscar provas para o inquérito, o que salvava temporariamente minha pele... - O senhor acha que vou ficar aqui nesse banheiro fétido? - Como vou saber se não foi uma de vocês? - atacou ofendido o proprietário. - Vamos então chamar a polícia! - anunciou uma delas. Preso por invadir o banheiro das mulheres, manchete de todos os jornais como uma ameaça sanitária e alvo de chacota pro resto de minha vida... Estava destruído por uma indisposição. Por que fui me deixar seduzir por um filé mal passado? Preparei-me para sair de meu esconderijo. Seria mais digno me entregar do que ser descoberto por um delegado. Quando, de repente retornou o garçom... - Ele fugiu! - Que situação! - lamentou uma voz feminina. - As senhoras vão ter que esperar para resolvermos a queixa... - Nós vamos embora. Não ficamos mais um minuto aqui... Outra dor me esfaqueou a barriga. Sentei no vaso e me contorci para não gritar. Senti como se fosse virar do avesso. O suor voltou a escorrer... - Esperem! - o maldito garçom gritou. A avalanche desceu impiedosa e com ela o cheiro que tomou conta do lugar novamente. - Meu Deus! - Veio dali! Escutei passos em minha direção... Alguém perguntou com a voz abafada e nauseada... - Tem gente? Era uma situação ridícula e humilhante. Preparei-me como pude e empurrei levemente a porta. Os quatro olhavam atônitos, enquanto tapavam o nariz... - Por favor, o senhor poderia trazer minha conta? - solicitei gentilmente ao garçom. |
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