Tema 194 - EXCLUSIVIDADE
Índice de autores
TEM GENTE?
Claudio Alecrim

Mal começara e já corria para o fim. O bife convidava, cercado por batatas, tomates vermelhos como rubi, folhas de rúcula e caprichosamente chuviscado de orégão e manjericão. Para beber, um vinho encorpado que escolhi aleatoriamente no cardápio feito de couro fino. Tudo era de bom gosto e sofisticadamente delicioso. Amolei o garfo na faca para atacar avidamente a comida quando uma dor aguda atravessou-me a barriga como uma lança. Olhei em volta, paralisado pelo sofrimento, enquanto uma algaravia feliz enchia o lugar com anjos famintos sob arpejos vindos do inferno.

Levantei como um soldado que presta continência. O garçom se aproximou...

- Algum problema, senhor?

- Não... Quero dizer...

- A comida não está boa?

- Ótima!

- Vejo que o senhor mal tocou no prato...

- É que me lembrei de uma coisa importante...

Nesse momento a dor apertou meu abdômen como um cinto com a força de dez homens. Minha cabeça, num reflexo, girou e minhas mãos abraçaram meu corpo involuntariamente...

- O senhor está sentindo alguma coisa?

- Preciso ir ao banheiro...

O infeliz apontou a direção com escárnio estampado na cara... Como quem se despede da mulher amada, passei meus olhos tristes pelo meu prato e corri para o banheiro.

Entre os dois era impossível decifrar qual era o dos homens. Grafismos misturavam-se enigmáticos. Escolhi na sorte e entrei desesperado. Tranquei-me numa cabine e esperei até que fosse perdoado por todos os pecados e profanações eventuais. Prometi que me comportaria como um homem civilizado diante de um prato de comida.

Alguém entrou justo quando me preparava para sair... Escutei vozes femininas...

- Hoje eu pego aquele safado!

Olhei pela fresta da porta e vi as duas diante do espelho retocando a maquiagem...

- Você está sentido?

- Meu Deus! Deve ter um cadáver nesse banheiro...

- Parece que tem alguém ali...

Fiquei inerte e economizei o oxigênio o mais que pude para não emitir qualquer som...

- Vamos sair daqui logo...

- Não!

- Como você aguenta?

- Vamos esperar pra ver quem é...

Elas cochichavam, mas podia ouvir claramente tão sórdido e desumano plano. O que faço? Pensei bem baixinho.

- Eu tive uma idéia!

- O quê?

- Vamos para fora e esperamos a pessoa sair...

- Combinado!

As duas saíram e então pude respirar aliviado. Mas estava irremediavelmente preso ao banheiro. Como sairia com as duas a me espreitar? Seria um escândalo a considerar que estava no banheiro de mulheres para piorar minha situação. Não havia janelas e nem dutos de ventilação por onde pudesse escapar. E se tentasse escapar o garçom chamaria a polícia... Escutei a porta abrir novamente e me enfiei noutra cabine.

- O senhor precisa verificar!

Elas trouxeram o dono do restaurante, veio-me a idéia como um raio certeiro que não me matou por sorte.

- As senhoras têm certeza?

- Alguém deve ter passado mal...

- O cheiro esta horrível mesmo - concordou o homem

- Só pode ser alguém morto! Um cheiro por pior que seja não dura tanto tempo...

Escutei os passos na direção da cabine. Meu coração correu em disparada. Senti o suor frio se espalhar por todo o meu corpo.

- Meu Deus!

- Não há ninguém!

- Olhe aquilo!

- Não pode ser gente!

- Senhoras, vou isolar a área...

Nesse momento entra outra pessoa...

- Vocês viram o cliente da mesa cinco? Mostrei os banheiros e ele sumiu...

- Será que fugiu sem pagar a conta? - indagou o gerente ou dono do lugar.

- Nada! É ele o culpado por isso!

- Nunca vi coisa igual...

- Ainda bem que ele nem tocou na comida... Foi comida de outro restaurante...

- Como podemos ter certeza? - perguntou uma das mulheres.

- Como assim, senhora?

- Se o seu restaurante não faz isso com as pessoas...

- A senhora está insinuando que nossa cozinha não é segura?

- Como vou saber...

O tal gerente ou sei lá o que era, ordenou que o garçom fosse buscar provas para o inquérito, o que salvava temporariamente minha pele...

- O senhor acha que vou ficar aqui nesse banheiro fétido?

- Como vou saber se não foi uma de vocês? - atacou ofendido o proprietário.

- Vamos então chamar a polícia! - anunciou uma delas.

Preso por invadir o banheiro das mulheres, manchete de todos os jornais como uma ameaça sanitária e alvo de chacota pro resto de minha vida... Estava destruído por uma indisposição. Por que fui me deixar seduzir por um filé mal passado?

Preparei-me para sair de meu esconderijo. Seria mais digno me entregar do que ser descoberto por um delegado. Quando, de repente retornou o garçom...

- Ele fugiu!

- Que situação! - lamentou uma voz feminina.

- As senhoras vão ter que esperar para resolvermos a queixa...

- Nós vamos embora. Não ficamos mais um minuto aqui...

Outra dor me esfaqueou a barriga. Sentei no vaso e me contorci para não gritar. Senti como se fosse virar do avesso. O suor voltou a escorrer...

- Esperem! - o maldito garçom gritou.

A avalanche desceu impiedosa e com ela o cheiro que tomou conta do lugar novamente.

- Meu Deus!

- Veio dali!

Escutei passos em minha direção... Alguém perguntou com a voz abafada e nauseada...

- Tem gente?

Era uma situação ridícula e humilhante. Preparei-me como pude e empurrei levemente a porta. Os quatro olhavam atônitos, enquanto tapavam o nariz...

- Por favor, o senhor poderia trazer minha conta? - solicitei gentilmente ao garçom.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor