Tema 195 - TRAPAÇA
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TRAPAÇA
Daniela Fernanda

Estou trapaceando comigo mesma.

Trapaça esta que não tem desculpa, mas com certeza, não tem culpa.

Preciso me enganar. Preciso acreditar que sou feliz, que estou bem. Só assim acabo acreditando que estou mesmo. Meu trabalho é bom, e se não for, basta pensar que é, pois só assim ele poderá ser.

A família que me constituiu é boa e a que eu constitui por opção, ou não, é ainda melhor. E se não for, que diferença faz? É preciso trapacear, ao menos para se sentir melhor. Trapaceio no jantar em família, nos encontros de trabalho e nas reuniões casuais de amigos. Afinal, essa trapaça se constituí em mostrar que estou feliz. Que mal há nisso? E nem é porque quero, tampouco por ser hipócrita, mas porque acredito, ou no mínimo, preciso acreditar nisso para existir. Afirmo que sou bem sucedida, que fiz as escolhas certas e principalmente, que as metas da minha vida são claras como as águas límpidas do mar caribenho. E se não forem? Quem vai dizer que não são?

Por vezes trapaceio, e com a maior tranqüilidade, que encontrei o grande amor, sabendo que nada, nem ninguém será capaz de descobrir a verdade triste, aquela que a realidade persiste em me mostrar, que o "grande" amor nem existe, que este, faz parte do grande inconsciente coletivo que nos persegue desde o paraíso. Fazer o quê? Será que alguém será prejudicado por essa trapaça? Não acredito.

Por outras vezes, tento de forma vã, trapacear o meu próprio Deus, alegando que a minha inveja é santa e não humana, que meus desejos são da alma e não do corpo, que meus pecados são pura ignorância e não conhecedores das minhas responsabilidades. Só Deus sabe a verdade, aquela que eu mesma, no fundo, no fundo, desconheço.

Trapacear, nem sempre é algo infame como se julga precocemente, pois na maior parte das vezes foge ao controle, foge à razão, foge ao próprio discernimento do indivíduo que trapaceia.

Tem dias que acredito que sou tudo o que digo ser. Mas logo, em outros dias, acredito que ainda vou ser. E, é claro, tem aqueles dias que sei que não sou, nem nunca serei aquilo que digo ou que almejo ser. Mas é assim que o tempo transcorre, e nada me aponta, muito menos me garante, que alguém seja diferente disso. Apenas uns aceitam que são trapaceiros do quotidiano, enquanto outros simplesmente não enxergam. Ainda existem os que negam até a morte, mas que trapaceiam ao longo da vida, e se puderem, de alguma forma, ainda tentarão trapacear a tão temida e inevitável morte. Quisera eu ser suficientemente atroz e sagaz, para trapacear a face da morte. Então eu não viveria apenas os noventa anos, como desejo, mas cento os oitenta anos, os quais nunca imaginei viver. E teria não três, mas seis, ou sete amores, para trapacear com graça, coisas que só quem vive grandes paixões é capaz de reconhecer a necessidade da trapaça em uma noite de sedução ou em outra de discussão.

Trapaça faz parte da vida. Não busca o mal de ninguém, tampouco intenciona fazer o bem. Apenas existe e subexiste nessa terra chamada Terra, mas que popularmente é mais conhecida como terra de ninguém. Trapaceie, seja trapaceado, negue a própria trapaça ou a trapaça de outrem, mas viva e irremediavelmente conviva, com a trapaça que tu empoes ou te submetes à trapaça de alguém.

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