Tema 197 - TEMA LIVRE
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VERÃO DE DEZ
Eduardo Prearo

"Fiquei a olhar algumas gaivotas, e o sentimento de culpa por se achar infantil,irresponsável e egoísta haviam aumentado. Já me imaginava mais velho, estimulado a bater palmas cada vez que alguém cantava uma paródia obscena de Sandra Rosa Madalena. Eu era e fora um palhaço."

Dorian releu o que escreveu enquanto bebia um chá de amora. A possibilidade de se tornar um morador de rua não era mais remota: não tinha amigos e os empregos da sua área se cooperatizaram e se focaram em produção, sendo que nada era fixo. Ademais o jeito ou o esteriótipo dele quase sempre provocavam interrogatórios, talvez pra saberem, claro com o intuito de ajudarem, o quanto ele estava sendo malandro ou não.

O verão já acabava e fora assim: sem dúvida estranho. Dorian achou inopinadamente que estava em desiquilíbrio, e mesmo nas terapias em que frequentava a expressão "sinto muito" era recorrente. Pensou em escrever alguma coisa, alguma poesia, mas seus pensamentos beiravam aquela coisa relativa chamada besteirol, e ademais diziam que escrever era coisa para quem não tinha tempo, e ademais o corrigiam em tudo, também no português. Mesmo existindo a tal da liberdade de expressão, talvez não fosse correto de sua parte escrever justamente porque errava muito, e parecia não haver oportunidade de se tornar um escritor: havia também a máfia, a mediocridade.

Os discursos do populacho desconhecido que dizia o quanto era próspero ou o quanto a vida era indócil pareciam-lhe retóricos. Esses desconhecidos e mesmo alguns conhecidos diziam-lhe que não tinham, e era uma ilusão da parte dele achar que não sabia o que significava esse "não tenho", mesmo não estando a pedir freneticamente algo. Precisava então ser amado pelo mundo? Sentia que de alguma forma o perseguiam e também que jamais teria um salário bom porque era egoísta, achavam-no egoísta para lhe darem qualquer oportunidade.

Enquanto tomava o chá, lembrou-se da festa que fora ontem, onde havia um desconhecido fazendo um discurso contra ele, dizendo em alto e bom tom que ele era um chato. Era comum agora o chamarem de chato; Dorian achou que o chamavam assim porque estava velho e feio. Esquecia-se do básico, que era dizer bom dia, e teria que reaprender através das advertências alheias. Julgar-se abria uma porta para que outros ratificassem seu julgamento e o manipulassem ou o punissem. Bem dizer era visto como um bandido, como um fuçador para a qual a focinheira mais dia menos dia viria não se sabe de que forma. O populacho desconhecido quando o via parecia que pensava em Montana, nessa região situada nos Estados Unidos, pois sussurravam essa palavra. Talvez ele parecesse ser de Montana, se bem que achava que tinha uma aparência de senhor. Dorian também se achava um chato, mas, se Deus o perdoasse, achava mais chato a maioria ao seu redor. Ele talvez não tivesse mesmo mudado, mas sentia que estava mais lento e com defesas mais lentas. Havia fila de tentadores para deixarem-no tentar. Deixem-me tentar, dizia, mas não, e os especiais estavam à frente com tato, razão e afeto, com dezenas de amigos que amavam suas chatices. Talvez a última coisa que achassem dele era que ele fosse frágil. Mais de que o normal.

Acabou de tomar seu chá de amora e botou o copo sobre a mesa. Precisava fazer alguma coisa para não se sentir cobrado. Ele sabia mais do que ninguém de que havia um consenso para com ele por parte de toda a humanidade, mas também sabia que inexistia. De qualquer forma, teria de sofrer talvez para aprender a não pensar só no seu próprio umbigo ou então para ter mais respeito às pessoas.

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