Tema 197 - TEMA LIVRE
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CONFISSÃO
Fernando Fesant

Marco estava pronto pro pior. Depois de duas pontes de safena e um câncer no intestino, causa desconhecida não constava na sua lista de causa de morte. Cla ra sua mulher, tentava ajeitar o travesseiro de baixo de sua cabeça

- Calma querido, já chamei uma ambulância. Logo, logo, ela estará aqui.

- Acho que não vai dar tempo, Clara.

- Calma, vai dar sim senhor. Relaxa.

- Você liga para os meninos?

Meu Deus. Marco sentia uma dor forte no estômago. Não conseguia respirar direito. Sabia que não tinha muito tempo. Então dizem que nos instantes que antecedem o fim, rola um filme em nossas cabeças. A memória reativa coisas esquecidas. Seus filhos já estavam crescidos. Trinta e cinco anos já haviam se passado desde então. Já existiam os netos e os longos e tediosos finais de semana. Os negócios iam bem, porra, tinha que ser logo com ele?

- Clara.

- Sim, amor.

- Me traz aquele porta-retrato da gente em família.

- Claro, amor.

Clara foi até a estante, pegou o porta-retrato da família. Todos estavam lá. Não queria morrer sem levar consigo a doce lembrança da família reunida. Tinha sorte. Foi um baita sortudo . A coisa rolou tão perfeita em sua vida que não poderia reclamar dela. Pensando bem, poderia morrer sim. Qual é a real sina de um homem senão a possibilidade de deixar uma descendência descente no planeta. Seu legado iria continuar. Oh, sim, pelo menos por uns duzentos anos se todos os seus filhos vivessem o mesmo tempo do que ele seus e os filhos dos filhos deles também. E Clara nessa história? Ele tinha que agradecer e muito por tê-lo suportado por todos esses anos ao seu lado. Ele devia uma para ela. Não lhe restava muito tempo. Já estava ficando difícil respirar. Clara devia saber, tinha esse direito. Engraçado. Morrer nos deixa mais sensível mesmo. É uma sensação estranha. A derradeira. Então todas as coisas deveriam ser passadas a limpo.

- Clara.

- Sim, amor?

- Eu estou acabando, amor.

- É amor, eu sei.

- Você sabe muitas coisas, garota.

- Muitas, eu acho.

- Mas nem todas, não é?

- Ninguém sabe tudo, querido.

- É,é. Po r isso preciso te contar uma coisa.

- Sem as crianças aqui?

- Não, não, são coisas de casal. Isso é entre mim e você. Coisas de casal.

- Oh.

- Eu não fui um sujeito legal com você uma ou duas vezes nessa vida.

- Eu também não. Tive meus momentos ruins. Minhas depressões, a menopausa...

- É, é , amor. Mas isso a gente tirou de letra. Mas eu estou falando de outra coisa.

- Sim.

- Bom . . . ah, droga.

- O quê?

- Bem, eu dormi coma sua mãe. Ela ainda era jovem e bonita naquela época. Depois a sua irmã, Linda na época em que brigamos no natal de 76. Não foi nada sério. Elas me assediaram. Eu não resisti. Mas foi uma vez só com ambas. Eu juro.

- É amor, eu sei.

- Sabe?Como?

- Papai.

- O que tem ele?

- Foi quem me contou antes de morrer. Mamãe contou pra ele. Foi por isso que a envenenei. Depois Linda e agora você, amor.

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