Tema 197 - TEMA LIVRE
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A MAIS LONGA DAS VIAGENS
Raimundo Lopes

Severino dirigia seu caminhão Mercedes Bens, modelo 2013, trucado, ainda maçarico, ano 1974. Vinha do Estado de Pernambuco, carregado de pedra, para a fábrica de cimento de sua cidade. Eram 19h30min de uma quinta-feira. O céu estava claro, iluminado por uma lua reluzente que ajudava os faróis do possante a clarear um pouco mais o asfalto escuro da rodovia.

Só que Severino não vinh a bem. Desde a sua saída, do local onde carregara o bruto, dores nos rins lhe incomodavam, não o deixando muito confortável na boléia do caminhão. Tentou em vão agüentar aquela dor dilacerante, ouvindo música no rádio, mas não estava nem conseguindo manter a velocidade constante do veículo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas e era preciso morder os lábios, com força, para não gritar de desespero.
De repente, sentiu que não iria conseguir mais dirigir, pois sua cabeça começou a querer pender para um lado e a estrada, à sua frente, ia, aos poucos, tornando-se apenas um fio que ia sumindo, cada vez mais estreito.

Apesar da dor, do princípio de desmaio, Biró - como era mais conhecido por seus colegas de estrada - era um motorista experiente, considerado um dos melhores em sua profissão e um dos pioneiros nas viagens para o Sudeste/Sul - época em que ainda não existia o asfalto e uma viagem, entre o Rio Grande do Norte e São Paulo, ida e volta, levava um mês para se r completada.

E essa experiência foi essencial para que ele conseguisse abrir a seta à direita e estacionasse o caminhão no acostamento. Porém, seu suplício estava apenas começando. Parado ali, no meio do nada, distante da próxima cidade cerca de 20 quilômetros, contorcendo-se de dor, Severino abriu a porta e, a duras penas, conseguiu descer do transporte. Ficou na frente da cabine, encostado no pára-choque, com as luzes acesas a meia luz, segurando com força a região da cintura, torcendo que passasse um carro para ele acenar por socorro.

"Meu Deus, não me abandone nesse momento! Tenha compaixão e me ajude mais uma vez! Sou seu servo e nunca desobedeci a seus mandamentos. Manda um cristão para me levar para a cidade mais próxima onde eu possa receber os cuidados médicos. Não me deixe morrer sem ver minha esposa e meus dois filhos".

A oração feita em forma de pedido, por Biró, ressoou pela noite em busca de quem pudesse ajudar.

De repente, não ag üentando mais as dores, ele foi se agachando e acabou por se deitar no asfalto - o mesmo por onde tantas vezes ele trafegou - mas que, agora, o recebia, não sobre rodas, e sim, apenas o corpo que se contorcia, gritando de dor, fazendo da pavimentação a sua cama de espinhos. Foram longos e demorados minutos tentando controlar a agonia da dor: rolava em frente ao seu caminhão, iluminado pelos faróis, e chorava o choro de quem ia perdendo as esperanças de ser socorrido.

Num último esforço, reunindo toda a energia que precisava, conseguiu se levantar e andar um pouco. Percebeu que seria difícil ser socorrido ali. Tinha que prosseguir viagem.
Olhou para o céu com mais força que da primeira vez e pediu para o Todo Poderoso lhe guiar até a cidade de Patu/RN, pois lá ele receberia atendimento médico.

Arrastando-se pela lateral da cabine, ele chegou à porta do lado do motorista, segurou o trinco e apertou. A porta abriu-se, mas lhe faltou alento para subir. Era um homem de estatura baixa, magro e já tinha passado dos sessenta e cinco anos. Sua vida se resumia às viagens que fazia dirigindo e a uma boléia do caminhão, ofício que, desde os dezoito anos - primeiro como ajudante de motorista, depois como empregado do próprio sogro e, finalmente, como proprietário do seu primeiro caminhão Mercedes Benz, cara chata, ano 1958 - fazia pelo Brasil afora.

Fazendo um esforço sobre-humano, ele conseguiu subir e sentar-se na cadeira do motorista. Desligou as luzes, ligou o motor, engatou a primeira, abriu a seta à esquerda, olhou no retrovisor - só enxergando a noite escura atrás de si -, acelerou e voltou a andar. As dores voltaram mais fortes, mas ele estava determinado a chegar ao seu destino. Foi trocando as marchas e buscou todo o seu poder de concentração para não cometer nenhuma falha que pudesse ocasionar um acidente, que àquela altura, seria o mesmo que decretar o fim de tudo.

O caminhão desenvolvia uma boa velocidade e S everino controlava as dores, até sentindo uma trégua em sua visão turva pela ânsia do desmaio. O asfalto era de boa qualidade e, ao subir uma serra de uns duzentos metros, ele viu, lá longe, a claridade das luzes da cidade. Isso o animou. Acelerou na descida, retomando a velocidade da quinta marcha.

De repente, ele sentiu um estouro, o volante quis tomar de suas mãos, fazendo um giro para a esquerda, porém sua experiência e o hidráulico fizeram com que ele conseguisse parar seu 2013. Nesse instante, Severino chorou. Chorou como se fosse um menino que via sua pipa indo embora. Sabia que tinha estourado um pneu. O caminhão estava "penso" para um lado e ele, ali, sentado, com a cabeça no volante, chorava.

"Meu Deus, porque estou passando por essa provação?" - seu lamento era de desespero. Via-se inutilizado, sozinho, desamparado.

Voltou a reunir suas energias, abriu a porta, desceu e viu o pneu dianteiro, do seu lado, totalmente em tiras. Pegou a chave q ue colocava embaixo do seu banco, enganchada num pequeno armador, abriu o cadeado da gaveta das ferramentas, tirou o macaco, a chave de roda, a barra de ferro - para servir de alavanca, colocou-a ao lado da roda e sentou-se. Precisava descansar e buscar forças para continuar.

Como as dores voltaram, devido ao esforço de pegar em tanto peso, Severino deitou-se ao lado da roda e foi arrastando o macaco para centralizá-lo no eixo dianteiro. Colocou-o e começou a bombear para encaixá-lo firme e depois levantá-lo. Com as condições praticamente na estaca zero, cada esforço era multiplicado. Depois de meia hora, ele que tinha se levantado, afrouxado os parafusos da roda, voltou a bombear o macaco e terminou de suspendê-lo, deixando a roda livre para ser tirada, ao mesmo tempo em que também deixava pronto o caminho para colocar o pneu cheio, em substituição ao que tinha explodido. Em seguida, foi buscar o pneu de estepe. Foi outra operação dolorosa. Teve que deixar cair o pn eu no chão, torcendo para que ele não ficasse preso no cabo de aço que o segurava. Conseguiu trazê-lo para junto da roda dianteira. Com muito esforço, conseguiu tirar a roda e colocar a outra com o pneu cheio. Voltou e acoplou a roda retirada no lugar do estepe. Retornou e apertou os parafusos da roda com o pneu cheio.
Quando terminou, já eram 22h00min. Seu corpo estava gelado, já não tinha mais sensibilidade das mãos e as dores já tinham tomado de conta do seu corpo. Sua boca estava seca, em discordância com o resto do seu corpo, que estava completamente molhado, deixando suas roupas úmidas.

Severino entrou na boléia do seu caminhão, ligou e deu partida. A cada quilômetro percorrido, a certeza de conseguir chegar. Chegou. Entrou na cidade e parou em frente à igreja. Tinha algumas pessoas sentadas nos degraus da calçada que dava acesso à porta da frente. Severino desceu do seu caminhão Mercedes, fechou a cabine, aproximou-se das pessoas e pediu ajuda. Em seguida, desmaiou. Acordou no leito de um hospital. Estava medicado. O médico que o atendeu ficou espantado e incrédulo com sua história. Providenciou os telefonemas necessários para que seus familiares fossem buscá-lo. Foram e trouxeram-no para Mossoró/RN, vivo e novamente com saúde. Era o ano de 1990.

Nota do autor: Esse conto foi um dos vencedores do 1º Concurso de "Contos de Caminhoneiro" patrocinado pela Mercedes e organizado e divulgado pelos Anjos de Prata.

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