Tema 197 - TEMA LIVRE
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A POSSUÍDA
Raymundo Silveira

“Não importa que não me acreditem,
mas só digo a verdade - mesmo quando ela é inverossímil”.
[Mário de Sá-Carneiro: A Confissão de Lúcio]

Era casada, a Possuída. Muito bem casada. E não sabia. Eu tampouco sabia que ela não sabia. Decerto a inconsciência da sua situação conjugal, levou-a a se envolver comigo. Paixão recíproca e avassaladora. De súbito, e sem qualquer motivo aparente, me ignorou como se jamais tivesse sequer me conhecido. Só ao comparar o seu comportamento atual com o anterior, e reler as cartas que me escreveu, descobri que estive apaixonado por uma pessoa que nunca existiu. Tratava-se de algo que também nem existe mais. Não passava de um clone avariado e desgarrado que se recuperou e reverteu à matriz.

Sentindo-me mais perplexo e curioso do que decepcionado e saudoso, decidi investigar tudo com máxima isenção emocional. Estudar uma doença desconhecida como um pesquisador, dela recém-curado. Fui aos livros. Primeiro, aos científicos. Não encontrando nada pertinente, recorri à literatura fantástica. Três obras me chamaram a atenção: “O Horla”, de Maupassant; “William Wilson”, de Poe; e “O Duplo”, de Dostoievski.

Concluí, em primeiro lugar, que a chamada “verdade” cartesiana não passa de mais uma ilusão; uma religião cuja deusa é uma duvidosa “razão”. Concluí também que a Possuída foi um ogro que devorou um naco apreciável dos meus sentimentos mais profundos, sem que eu e ela nos déssemos conta disso.

Ignoro a que se deve o ato falho que o inconsciente me impingiu ao nomeá-la “Possuída”. Pois em verdade foi ela quem me possuiu. Trago um computador de neurônios que é a minha perdição. Terrível e prodigiosa, a memória quase me destruiu.

Começou com um inocente louvor à sua beleza, ao qual ela reagiu com um sorriso maroto e convidativo. Foi o bastante para a represa arrebentar. Não esqueço um só detalhe. Das alucinantes carícias, à loucura de me vestir com o avesso das suas entranhas mais tenras, macias e aconchegantes, a ponto de imaginar que jamais me desnudaria. Das cavalgadas, ora em choutos, ora em galopes, sob o seu absoluto domínio, às estranhas e inéditas experiências a que me submetia. Como aquele furor de alternâncias entre dois abrigos vizinhos, embora me implorasse para chover no seu rosto. Das palavras divinamente sujas de fêmea inteligente e vadia, aos estremecimentos, quase sincopais, ao me deglutir e regurgitar em ritmo crescente, até me esvaziar literalmente de tudo.

Algumas das suas falas menos obscenas durante os atos de amor, ainda geram calafrios:

“Então, vem... chupa ela bem gostoso...”; “... Delicioso...”; “começa passando a língua, depois morde devagarinho o g....”; “...assim... me segura pelo quadril, e me chupa até eu gozar na tua boca...”; “enquanto você me chupa, vou subindo e descendo a boca nesse c...... tesudo... agora enfio ele até a garganta...”; “agora passa ele pela b..... e pelo c. pra sentir tudo o que te espera... me f.... com a língua, vem...”... devagar, porra nenhuma.... tô com gana de você... Mesmo doendo, sentei pra valer... vou remexer tanto, que vai doer mais em você do que em mim...”

É o ponto extremo aonde me atrevo chegar, sem me tornar fescenino, ou correr o risco de desmaiar... Mesmo sabendo que ela não sabe que isto e muito mais coisas aconteceram. Pois Ela não é “Ela”. É uma esposa fiel, como, aliás, sempre foi. Quem fazia e falava aquilo era a metade de uma mulher sem consciência da sua outra metade. Então, me sinto na singularíssima condição de um dissoluto que prevaricava com um fantasma... Para evitar palavras mais contundentes e absurdas, tais como: um estuprador seduzido pela própria vítima que, por sua vez, nunca existiu.

Este redemoinho de loucuras me trouxe a mais firme convicção de que o ser humano é uma cratera sem fundo, aberta por um meteoro de carne na epiderme do universo.

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