Tema 199 - DAMA-DA-NOITE
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DE SEXO, LIVRO E INVEJA
Doca Ramos Mello

O que é a vida...

Tempos atrás eu quase morri de inveja da Bruna Surfistinha, afinal de uma só tacada a declarada garota de programa...

Um aparte para tratar de prosódia, discurso politicamente correto, eufemismo e tática linguística para inglês ver. Vamos por etapa.

Já houve tempo em que cafajeste era cafajeste, ladrão era ladrão, puta era puta, gente burra era gente burra, sujeito cheio de manias era sujeito cheio de manias, moleque danado na escola era moleque danado na escola, velho era velho mesmo, etc. Agora, não pode mais. Desenvolvemos no Brasil um negócio asqueroso intitulado “politicamente correto”, de sorte que velho agora é terceira idade (ou pior ainda, melhor idade – Deus tá vendo e achando uma beleza a artrite reumatoide, o Parkinson, etc., enfim...), ladrão é aloprado, gente burra passou a ser dislexa, sujeito com manias tem TOC, moleque danado na escola é hiperativo, puta se chama garota de programa e por aí vai, mas na essência nada muda, cada qual com seu ofício.

Voltando à inveja que senti de Bruna Surfistinha... Não por ela ser garota de programa porque eu poderia hoje, no máximo, me intitular mulher na melhor idade de programa, idosa de programa, velha de programa, mas não sei se daria certo, a nomenclatura ficou esquisita nas três alternativas e, além disso, eu sempre tive uma visão pessoal mais severa em relação a certas profissões (falo de minhas opções, não das alheias, pelo amor de Jesus Cristo, cada um faz o que lhe dá na telha, ser prostituta é liiindo!), portanto nem mesmo nos meus bons tempos de juventude, me seria palatável. Ai de mim, que ardo sob meu próprio lema desde a tenra adolescência: pé no chão e enxada na mão, ou seja, não nasci para borboletear ou mariposear pela vida, como fazem as damas da noite – a expressão era usada por meu pai muito antes de surgir o politicamente correto. Mas, respeito, respeito, acho lindo, uma beleza, etc., Santíssimo Sacramento do Altar, não me atirem pedras! (Porque existem leis e as leis são para gente como eu, simples, do povo, tipo Quase Indigente, periga a lesa aqui pegar uns cem anos de sol quadrado por discriminar a mocinha valorosa e batalhadora, longe de mim, longe de mim).

Bom...

Eu dizia da minha inveja da moça. Explico. Tenho passado anos e anos escrevendo feito uma louca, alimentando inclusive o sonho inatingível de editar um livro intitulado “As Valéryas”, sob o pseudônimo de Paula Coelha, virar uma gurua de rabo de cavalo grisalho, ganhar rios de dinheiro e viajar para a Sibéria com Glória Maria, a Simpaticíssima. Ah, e levar a reboque o Malvino Salvador para ele entrar nas águas geladas locais inteiramente nu, em minha homenagem. Tudo igual ao que fez Paulo Coelho (cruzes!), mas meu sonho não tem a mais remota chance de se tornar real... Até porque sou meio azarada e não consigo arrumar um Raul Seixas p’ra mim, oh, Senhor!

Então, me aparece a Bruna Surfistinha e bota um livro na praça, na maior, só para contar seus folguedos de alcova, as atividades prostituto-picantes de seu baixo ventre de meretriz, digo, dama da noite, o bruxuleante vai e vem de seus quadris alugados, nos mais mínimos detalhes escancarados. E vende! Francamente, não sei que novidade pode conter um livro com tal conteúdo, eis que jornais, revistas, rádio, tv, escola, conversas, filmes, novelas, debates, workshops, internet, todos os canais de comunicação e aprendizagem estão tomados por uma onda sexual capaz de santificar antigas messalinas, espertos gigolôs, démodés lupanares. Enfim, tudo tem sido dito, mostrado, incentivado, dissecado, fotografado, esquadrinhado, exposto, declarado e explicitado, como forma de não deixar um único mistério sexual no ar. Podemos não saber coisa nenhuma neste país, mas das artes e artimanhas do sexo ninguém tasca, a gente manja paca! E em todas as suas manifestações específicas, isto é, de graça, comprado, leiloado, à vista, à prestação, popular, a troco de reza, por um bom casamento, grosseiro, falso, amoroso, vendido, sadomasô, liberal, tradicional, picante, ingênuo, entre namorados, homem e mulher, mulher e mulher, homem e homem, grupal, solitário, aberração... Está tudo aí, no mercado de Sodoma e Gomorra em que vivemos, nas Saturnais domésticas ou governamentais de que temos notícia dia sim, outro, também.

O Brasil é libidinoso, liberal, sensual e sexy, temos as melhores bundas do planeta, os mais excitantes gigolôs, as mulheres mais gostosas, os gays mais poderosos, os machos mais sarados, as lésbicas mais insinuantes, a gente é uma potência grande no setor. Conosco, ninguém pode, bobeou, a gente pimba!

Voltemos à Bruna. Ainda se a moça fizesse alguma revelação bombástica, tipo ter feito sexo a três no coreto central de São Luiz de Paraitinga, numa Sexta-Feira Santa, ao meio-dia, e sendo um dos três envolvidos um elefante sem as patas traseiras, ou uma baleia orca verde, tudo bem, seria novidade. Mas, não foi o caso. Aliás, um fato bastante divulgado pela própria Bruna, e que deu projeção a ela na mídia e na carreira foi justamente a ‘proeza’ de arrancar de uma dona de casa o marido. Até para uma garota de programa considero o ‘feito’, digamos assim, bela porcaria, zero à esquerda. Afinal, o que não falta nessa feira, assim como mulheres de vida airada, é homem imbecil... Mercadinho barato esse. Sem contar que Bruna deve ter feito um favorzão à abandonada, ninguém merece um homem desse.

E já que estamos em tempos de abissais barracos via tv, acreditem que a mulher abandonada entrou no clima e esteve em diversos programas para falar sobre o assunto (pfui). Essa moda de abrir o baú da intimidade na telinha está-se tornando uma doença, mas a deselegância de maneiras dá muito ibope.

Agora pasmem! O cinema nacional, regiamente patrocinado também pelos governos, vai levar à telona o livro de Bruna Surfistinha, com a global Débora Secco no papel principal. Estou maravilhada! Se há uma coisa de que necessitamos por aqui é de padrões para a nossa juventude, coitada, sem futuro da silva. Para as moçoilas dos grotões de misérias e/ou as descoladas da classe média sem muita queda para o batente de ganhar o pão de cada dia com o suor bíblico de suas faces, preferindo, ambas as categorias, suar exatamente as partes outrora pudendas, vai ser excelente. Eu acho. Esse negócio de filmar a vida de mulheres sem graça nenhuma nem histórias sexuais escabrosas para contar não rende bilheteria e, além disso, não seria politicamente correto também. Incensemos Bruna Surfistinha.

Minha inveja só cresce. E acho a Bruna muito linda, uma gracinha, um doce, um ídolo, jovem moderna, antenada, o máximo, um talento...

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