Tema 199 - DAMA-DA-NOITE
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Eduardo Prearo

Pouca gente ou quase nenhuma parecia entendê-lo. Na verdade, Gerard estava confuso e pensava ser merecimento não conseguir se fazer claro a não ser talvez para ele mesmo. Por que estava difícil pensar em saídas, se lhe diziam que tudo, para que ele prosperasse e fosse útil à sociedade, dependia somente dele? Na opinião de profissionais, Gerard não era sadio. E para ele não era fácil prescindir da opinião dos profissionais que consultava (sempre menos odiosos do que ele), coisa do tipo "não vou tomar tal remédio e pronto", porque havia sempre uma esperança de que tomando os tais "novos" remédios pudesse se sentir mais forte, mais adulto e talvez feliz, porque achava que se não os tomasse sua situação no geral não melhoraria, mas continuaria a degringolar até um ponto baixo da condição humana, se é que ele já não estava em algum deles. Foi durante um passeio em uma tarde de outono, em um desses passeios onde ele ficava com intensa vontade de comprar alguma coisa que naquele momento parecia ter alta serventia como um celular, uns óculos de sol, ou então uma camisa da Ducal, e com intensa frustração por não ter dinheiro para adquiri-los que Gerard pensou em algo que o chocou. Era algum tipo de revelação que destruia sua impotência perante o mundo, coisa que até então ele achava impossível. Pensou por um instante que teria dificuldade em guardar aquela descoberta pra si próprio, já que diante do mundo o ignorante parecia sempre ele, e pôs-se a andar um pouco mais rápido do que normalmente andava. Será que alguém está notando?, pensou. Era muito, muito fácil perceberem o que lhe passava na mente, pois em certos aspectos, nos que ele não queria, Gerard era transparente. Talvez algum astrófilo lhe dissesse que aquilo decorria da sua simplicidade: uma pessoa simples de tudo, até nas suas malandragens, era óbvia. Gerard não era transparente, todavia, por exemplo, quando seres humanos altamente desconhecidos davam-lhe sinais de que sabiam que ele estava prestes a roubar algo. O senhor é louco, o senhor é ladrão, o senhor precisa de remédios! Não, ninguém ainda havia lhe dirigido a palavra com tais frases exatamente como as escrevi acima; claro, parecia não existir mais gente grossa na vida, mas gente com razões inabaláveis. Pôs-se a andar mais rápido, como já disse, naquele palco que era a cidade, e já sabia pra onde iria. Tomou um ônibus, um ônibus que o levaria até um lugar que lhe veio na mente, o lugar onde ele haveria de usar o poder que descobrira sem que ninguém notasse. Foi pensando nas pessoas que conhecia, sábias, individualizadas, cheias de Deus, nas críticas que elas lhes fariam caso soubessem de tudo. No ponto final, Gerard desceu e avistou completa escuridão. Não havia mais casas, mas uma mata à frente no qual se embrenhou sem pestanejar. Era preciso correr, correr sem tropeçar por uma trilha recém-descoberta, correr na escuridão. Gerard, no entanto, inopinadamente, caiu e desmaiou. A outra vez em que havia entrado naquela floresta quase urbana fora de dia, e ele se encantara com o cheiro da dama-da-noite. Girava o corpo com os braços abertos enquanto o Sol matinal o aquecia. Também daquela vez perdera os sentidos de tão entontecido, caindo calculadamente sobre uma relva azul. Fora até lá, um lugar que achara sem querer, e se encantara. Sentia-se esgotado, mas ainda sua razão era aceitável. E deitado sobre a relva, olhando para o céu azul onde havia a lua o surpreendendo porque era manhã, pensara em Mel e naquele quadro com que a presenteara, pintado por um medium. Mas ali não havia mar, havia Mel, que de súbito materializou-se:

-Estou tendo...como é que eles dizem, alucinação.

-Não, não está não. Realmente estou aqui, e o senhor pode me tocar se quiser. Mas é melhor não. Lembra-se de quando eu lhe falei a respeito de reencarnação e o senhor não aceitou?

-Claro que não aceitei. Eu não fui nada famoso em outra, como a senhora disse que fui. E faz tanto tempo, não faz? Tanto tempo que nos reencontramos. Hoje já fico ligando alguns fatos. Elias e Joao Batista, o rio Jordão. Claro que não vou conhecer o rio Jordão nesta, ou revê-lo. Mas por que estou dizendo essas coisas? Meu nome é Gerard e estou no século vinte e um, um século onde o egoísmo está acabando. A senhora me perdoa, Mel, por eu não ter me tornado santo mas uma pessoa insana? A senhora sabe a frase que eu sempre quis ouvir, não sabe?

-Eu te amo?

-Não, não era essa. Era "continue sempre assim" de alguém que me amasse. Ou melhor, continue sempre assim no sentido de ser uma pessoa boa e maravilhosa. Mel? Mel?

Depois que amanheceu, o corpo de Gerard não deu sinal de vida, continuou caído ali, num ponto daquela trilha que parecia sem fim. O que ele foi fazer ali, eu nunca saberei. Posso supor, é claro, imaginar dezenas de coisas que o fizeram sair do centro da cidade para testar ou aplicar sua descoberta naquela floresta, mas minha inteligência também é curta. Estou com sono. Mas é um sono de ódio.

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