Tema 200 - 1956
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SERENDIPTIAS
Lia Abreu Falcão

[Neologismo que se refere a descobertas afortunadas e, aparentemente, por acaso]

Fernando Tavares Sabino, brilhante escritor mineiro, publicou o romance "O Encontro Marcado" em 1956, data inesquecível para fãs da obra afortunada desse exímio contador de estórias.

Muito tempo depois, ainda bem menina, se me deu o luxo da leitura precoce, e conheci a verdadeira Literatura enquanto lia a coluna "Dito e Feito", de autoria desse romancista. Para mim, era a melhor parte da semana: dito escrito era feito de genialidades, cenas cotidianas contadas com sutilezas e profundeza de pensamento, análise sensível do fator humano na sua mais íntima observação. Era absolutamente contagiante.

Era tal o meu encanto pela leveza escrita pelos poetas que, vira e mexe, ia pesquisar suas vidas e seus amores, ainda que sem as facilidades dos computadores. Usava eu, à época, outro artifício: amigos e amores, também estudantes, alguns residentes aqui, outros no Rio - verdadeiros informantes que me davam notícias frescas de onde e com quem andavam meus musos/escritores.

Um desses afetos, não nego, era um carioca da gema, e coube ao coitado pagar o mico de ir à Rua Canning, nº 22, furtar do Sabino o tão sonhado autógrafo. Foi recebido pelo próprio e isto deve ter lhe custado muitas boas tardes em sessões de psicoterapia, mas deve ter valido à pena. Primeiro, porque ganhamos, por assim dizer, o livro "A CIDADE VAZIA" com dedicatória romântica feita pelo autor para “o jovem casal" - coisa que jamais chegaríamos a ser, apesar da lindeza do ofertório. Segundo porque, justiça seja feita, o corajoso mancebo foi devidamente bem recompensado pela proeza carioca. Pero no mucho. Éramos apenas duas crianças. Pero no mucho.

Bom. Segue-se a vida e eis que, num dia nublado de muito mormaço aqui em Recife, após uma fatigante aula de Teoria Pura da Literatura, o catedrático da disciplina que aplicara a prova, me desafiou moral e publicamente: disse que não era possível ser de minha autoria a crônica que acabara de ler quando entreguei-lhe a prova e acusou-me de plagiar algum escritor conhecido, não lembro mais quem. Quase não acreditei no que ouvia. Eram tão minhas aquelas palavras no papel.

Humilhada e chorando muito, me retirei da sala e corri para a rua. Que vergonha! Todos os colegas me conheciam e sabiam que eu era muito tímida, matuta mesmo, que era órfã e do interior, uma pobre estudante que fazia das tripas coração para pagar a tal faculdade de Letras, apoiada por meu tio-padrinho. E agora? Como é que eu ia voltar a encarar meu tio e meus colegas?

Pois bem. Há casos e acasos. Serendiptismos. Sei que constrangida de morte, caminhava rapidamente para o trabalho do meu tio, Caixa Econômica, para me aconselhar e me consolar e, não sei ao certo, só sei que no meio do caminho tinha um cartaz. Sim. Tinha um cartaz no meio do caminho. Sei que estava posto numa livraria cujo dono era meu amigo e que assim dizia: "HOJE O GATO SOU EU!" Só isso. Mas me provocou tanto a curiosidade, me deu uma vontade louca de saber do que se tratava e tanto que até me esquecí da vergonha recém vivida na sala de aula e fui logo me sentar no banquinho em torno da fonte luminosa, bem no meio da livraria. Oxente. Fiquei feliz igual Alice no país das Maravilhas, sem horário pra chá nem bolo.

Passaram-se duas horas. Cansada de tanto esperar pelo evento, comecei a reclamar da vida de estudante, tão cheia de deveres e nenhum direito; do absurdo do horário do evento do tal gato; quem era esse para fazer a gente esperar tanto assim; uma lástima. As pessoas ouviam e assentiam com a cabeça, mais por compaixão do que por entendimento. De alguma forma, compreendiam e eram solidárias com a solidão da minha espera.

Foi então que, entre um suspiro de tédio e outro, sentou-se ao meu lado um senhor de porte nobre, meio sisudo, meio simpático, com pinta de rico mas não de gente besta e estava, também, impaciente com o horário do evento. Acendia um cigarro no outro e tomava uma bebida com bastante gelo. Devia ser de fora, estranhava o mormaço recifense. Ou então, devia ser alguém entediado mesmo. Não me fiz de rogada, puxei logo um conversê pra descontrair o senhor sisudo:

- Mas não é um absurdo que no cartaz conste 'catorze horas' e que até agora ninguém deu o ar da graça por aqui, no país das 'dezessete'?

O moço assentia com a cabeça e ria meio de banda. Talvez estivesse achando graça do meu jeito nordestinado de cobrar o que nem tinha direito: era um evento gratuito e, como tal, as pessoas se dão ao luxo de atrasar quando vem. Além do mais devia estar achando muito esquisito uma moça tão tagarela no meio de um povo tão sisudo como ele. E era abusada:

- Mas veja só: em frente a uma Faculdade de Direito, esse povo nega nosso direito ao evento, ao horário marcado, sem justificativas? Isso é um “desabsurdo” como diz minha amiga Ilka! Isso é um “desacúmulo”, como ela diz também!

E, para minha surpresa, aquele sisudo senhor caiu na gargalhada! Talvez porque eu repetisse matutamente o que a pobre da amiga Ilka, inconsciente do assassinato linguístico, repetia diariamente. Não sei. Só sei que o gelo foi quebrado, ele começou a prosear e, agora mais descontraído, se pelo uísque se pelas minhas asneiras de menina, sorria bastante enquanto esperávamos juntos a abertura do tal evento do gato. Tinha a idade que meu pai teria se vivo ainda fosse. Exatamente. Era parecido com meu pai, com meu tio. Assim, meio de longe.

Em dado momento, perguntou meu nome e onde eu estudava. Respondi bem acabrunhada: É Lia e estudo Letras na PUC, por quê? Nunca viu uma aluna de Letras abusada com dono de livraria não, é? Mais simpática, impossível.

O homem agora ria desavergonhadamente. Alguns momentos depois, levantou-se do banquinho onde estávamos sentados há mais de hora e dirigiu-se para um birô, na frente de uma pequena turba cercada de um palco com os cartazes e fotos. E deu-se que fui tomada de um baita susto quando ouvi o moço me chamar: "Lia! Estudante de Letras da PUC, queira vir até aqui, por favor?"

Era eu? Eu mesma. O que foi que eu fiz? Fiz nada. Só reclamei um pouquinho do atraso, gente. Pronto. Agora já foi. Meu Padim Ciço! Fiz nada errado não! Só falei mal um tiquinho assim, ó. Mas foi só de brincadeirinha. Gelei dos pés à cabeça, fiquei roxa de vergonha, de novo, no mesmo dia! Sabia que não era pra ter saído de casa hoje, pensava. Bem que o céu avisou todo nublado. Olhava para os lados e tudo que eu via era uma turba de estudantes e fãs antigos do escritor aplaudindo o gesto e me olhando meio atravessado. Meio pasma meio incrédula, observei que o homem que me chamava era o mesmo que estava nas fotos do novo cartaz que agora figurava na frente de todos: "O GATO SOU EU!" E uma foto dele enorme, sorrindo. De banda.

Mas era ele mesmo, o homem do cartaz era o escritor do livro do gato e, meu deus do céu, era o homem que sentara ao meu lado por horas, esperando a hora de começar o evento. Era com ele que eu gargalhara minutos atrás.

Não tivesse acontecido comigo, eu mesma duvidaria. Menos assustada do que contente, subi no palco para receber o belo presente, para meu assombro de alegria:

"PARA A MENINA LIA,
QUE GOSTA DE LETRAS E FAZ DIREITO.
DITO E FEITO.
O GATO SOU EU: FERNANDO SABINO!".

Serendipity.

[Até hoje sou assombrada com a belezura daquele momento.]

Horas antes, um professor tirano me desacreditara durante a prova escrita perante a turma de amigos. Agora, ganhava a prova escrita do próprio Fernando Sabino, aquele a quem eu devotava minha inteira coleção de "Dito e Feito" desde pequenina: eu "gostava de letras e fazia direito", disso nem o tirano do professor poderia mais duvidar. Dito e feito.

Serendipidades.

Em 1956, quando foi publicado "O Encontro Marcado", nenhum de nós tinha idéia de que um dia, numa tarde cinzenta, nos encontraríamos e nos encantaríamos um com o outro. Naquele dia, muitos anos depois do sucesso do romance de 1956, ele me deu a fórmula do meu próprio sucesso, o mais puro ungüento para uma alma órfã e sonhadora: a motivação para seguir em frente e sempre e mais... Não importa o que digam as mentes medíocres e os sabichões de plantão: siga sua estrela e faça direito.

Creio em SERENDIPTIAS e porque creio, elas acontecem sempre. Ou só acontecem porque sempre creio. Não sei ao certo. Só sei que acasos fortuitos me seguem por toda a parte. Poderia fazer um livro só sobre eles. Pequenos milagres do cotidiano que nos motivam a seguir sempre em frente, buscando a Verdade além das verdades. Por conta dessa Verdade, Fernando Sabino renasce a cada conto, a cada crônica, a cada releitura, a cada novo encontro. De "O Encontro Marcado", guardo a honra de figurar no prefácio da edição comemorativa dos 50 anos do lançamento da obra, em 2006, ao lado de seus amigos mais chegados.

Acasos fortuitos. Encontros marcados. Gatos. Vidas. Pessoas de sete vidas que não morrem, "se encantam", diria o Rosa. Sei que morri e nasci para as letras num único dia, tudo por puro alumbramento com as Letras dele. Sei que depois desse dia, o professor de Teoria da Literatura teve de ler em voz alta, para toda a turma, uma nota de retratação da injúria feita a minha humilde pessoinha. Sei que esse professor é hoje um respeitável amigo. E foi bom. Dito e feito.

Lia Sabino. Leio Sabino. Lerei Sabino.

Sempre. Sigo. Sempre.

Serendiptias.

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