A PRIMAVERA
Fernando Zocca
 
 
A ingesta inadvertida de uma sementinha pontiaguda de laranja superdoce ulcerou-lhe o cólon. Mas falar em "dor de barriga" naquele grupamento familial era tão ou mais constrangedor do que falar sobre cheque em casa de estelionatário condenado. Por isso e mais aquilo, não disse nada. Não queria saber de reações de quem vivia de braço dado com crendices e superstições. Aquietou-se e sabendo previamente que não cometendo exageros, a natureza se encarregaria de sanar aquele mal, deslocou seu foco de atenção para a lourinha bonita da TV.

Durante um rebolado onde a protuberância dos glúteos tele-irradiados provocava a liberação dos hormônios sexuais na corrente sangüínea, nada mais poder-se-ia fazer do que deixar a imaginação fluir com as imagens mil. Mas como tudo tem um começo, meio e fim, a superexcitação esmorecia depois dos longos minutos de frenéticos e convulsos gingares.

Naquela tarde modorrenta quando o calor já se punha a causar certa irritação, os credores, assim como numa consciência o remorso age e pune, mordiscavam com seus símbolos semiológicos o devedor agoniado.

Igual a piranhas que em cardumes atacavam aquele boi velho, revezando-se nas bocanhadas, os asseclas do crente credor punham-se a infernizar a vida dos existentes na comunidade aporrinhada.

A síndrome de Adma reificada nos golpes "Boa Noite Cinderela", envenenamentos e intoxicações alimentares dolosas fluía-lhe à consciência a todo instante insistindo nos cuidados redobrados que se deveriam tomar.

Os cães que incomodavam a idosa senhora dona de casa, que não queria briga com seus vizinhos, por reclamar da omissão dos seus responsáveis, punha em dúvida a existência do chamado "espírito de comunidade", pelo qual se valora o semelhante e não o cachorro, por mais bonitinho e provocador dos queridos orgasmos múltiplos nas suas proprietárias solitárias.

O pedófilo flagrado sem as calças dentro do seu carro velho naquele bairro distante, com a menor nua no seu colo, bem que poderia com o seu sofrimento imposto pelo cumprimento da lei, desestimular a conduta condenável de outros prováveis acéfalos senis.

Nos recantos destinados a receber os velhinhos desamparados, dimanavam despreocupadamente as alegrias, distantes dos temores das enchentes danosas e assassinas. Afinal as responsabilidades, se houvessem, por danos materiais ou morais bem como pela vida das pessoas, caberiam antes ao poder público que deveria, se assim fosse o caso, ser acionado e pagar tudo. Ao proprietário incumbia única e exclusivamente colher os frutos daqueles seus árduos esforços laborativos.

A afeição de certas pessoas assemelhava-se a jóia rara de extremada singularidade. Mas não eram insólitas suas falsidades. Assim como diante das pedras falsas, pensava-se estar diante do diamante puro. Não deixava de ser maligna a hipócrita perfídia maliciosa.

As dores abdominais não resistiram às caminhadas vigorosas pelos verdes campos e colinas aladeiradas da urbe valorada.

A primavera estava chegando. Com ela os aromas, a luminosidade e a temperatura adequados, causadores das benignas e benfazejas ligações amorosas.

Ainda bem.

 
 
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