A MUNHECA
Fernando Zocca
 
 

Estavam trafegando em um coletivo compacta e densamente preenchido pela massa corpórea daquelas substâncias freguesas e usuárias.

Em dado momento azarado, houve por bem a loucura ou imperícia ou quem pode saber a imprudência, ocasião para lançar corpo contra corpo resultando tal impacto de veículos numa queda no corredor central.

O alvoroço e a gritaria causada pela colisão foram sentidos por centenas de metros adiante. O congestionamento da via de acesso a uma saída estratégica do bairro operário pimpão causou comoção e angústia também na madame, que no carro ao lado, com o cãozinho no colo, sentiu a quentura da sua urina.

A correria de gente pra lá e pra cá evocava um formigueiro dolosamente cutucado.

Ambulâncias mil, viaturas das milícias civis e militares, caminhões do corpo de bombeiros, peruinhas das rádios FM e AM agregaram-se no sítio da trombada.

A busca por feridos e corpos lembrava aquele corre-corre que segue sempre aos terremotos ou inundações ou até mesmo aos desabamentos graves.

Mas dos escombros eis que sai toda faceira a velhota espanando a poeira do seu surrado, porém limpo vestidinho. A galera apreensiva liberou a tensão toda num oh! comovente ao ver a vovó ali trigueira.

A aglutinação em torno da vítima somente tinha como similar a aglomeração que ocorre junto ao goleador do time campeão dos campeões depois de derrubado por violenta paulistinha na coxa esquerda.

A vovozinha que sempre sofrera com a prisão de ventre, naquele momento percebeu que algo pastoso, úmido e quente escorria-lhe pelas pernas.

Segurando firmemente o punho esquerdo com a mãozinha direita, comprimindo as coxas e respirando arfadamente pela boca entreaberta, notou a anciã aquele populacho todo que vinha em sua direção.

A infeliz recordou aquele momento em que, quando criança, no seu primeiro e único dia de grupo escolar, quebrou os óculos do diretor apopléctico que fazia sua preleção inaugural para aquela classe iniciante.

Gelada pelo susto, molhada pela liberação inesperada do jantar anterior metabolizado rapidamente, a velhinha conseguiu o amparo no cobertor novo que lhe oferecia o oficial diligente.

Depois de preenchidos os papéis usuais foi orientada a procurar por alguém que deveria incumbir-se de pedir uma indenização por aqueles transtornos todos.

Com o seu coraçãozinho complacente e caridoso achou que deveria perdoar todos os prováveis culpados por aquele incidente infeliz.

Mas um genro seu ébrio e necessitado de verbas específicas que se destinariam a cobrir os gastos pelo consumo de caninha no botequim da esquina, moveu paus e pedras para que a venerada sogrinha contratasse patrono.

Além disso, o borracho providenciou também o auxílio das entidades espirituais e evangélicas na cobrança do crédito, mobilizando os centros e colocando o nome do devedor nas listas dos pedidos de orações e preces.

Atestados mil, irreais e inconseqüentes, forneceram um princípio de prova comprometedora.

Depois de anos de luta no Judiciário, e de assédio moral ao devedor, a vovozinha obteve o reconhecimento das suas razões. A base estava, porém inserida em premissas falsas. E da mesma forma com que um prédio ao ser construído sobre a areia, inapelavelmente vem abaixo, toda aquela pretensão jurídica fundada em inverdades, veio no seu devido tempo, ao chão da realidade.

Para que pudesse relaxar e se livrar do estresse, aceitou as sugestões que lhe faziam suas noras e viajou então para Pitiboigaga, localizada no Km 312 mais 500 metros da rodovia Pedepavão, onde havia chácaras excelentes nas quais se praticava o pesque e solte.

Sua maior e inesquecível alegria naquele local ocorreu quando capturou um abissal e assombroso bagre cabeçudo que soltou logo depois de fisgado.

E assim tudo então voltou ao que era antes no quartel do Abrantes.

 
 
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