A PAVOA LOUCA
Fernando Zocca

 
 
Aquele espécime de pavoa-alerquim nascida do acasalamento entre um macho de pavão-branco com uma fêmea de pavão-azul, veio ao mundo com uma característica inusitada para os seus semelhantes: a microcefalia. O cérebro diminuto proporcionava-lhe um certo ar apatetado de boboca pidão. Ela mais lembrava, pelo comportamento que tinha, uma galinha furreca, confusa entre os alhos e bugalhos. O seu rabo enorme e esquisito, que se abria em forma de leque, a toda hora e em qualquer lugar, levava-nos a pensar que ela teria maus antecedentes psiquiátricos. 

Ela sabia muito e bem que no viveiro a situação estava dificílima. Não havia ração, ovos cozidos, almeirão e couve pra nunhuma das demais penosas da comunidade, por mais iradas e rabugentas que se mostrassem. E ela detestava a alface causadora das diarréias horríveis. A rabuja reclamava; queixava-se contra tudo, contra todos e suas lamúrias extrapolavam os limites do aviário.

Não poderíamos dizer que ela ignorava a atual conjuntura; afinal ela era uma pavoa letrada e razoavelmente culta. E esse fenômeno, o de que conhecia os fatos, autorizava aos demais mortais do terreiro, a presumirem que esse seu fascínio pelas luzes, era inerente à constituição própria das rabudas presunçosas de pezões feios. 

Nas marolas que tentava produzir, chamando pra si os holofotes da notoriedade, ela cria no seu íntimo, que por mais barulho que fizesse, não poderia jamais mudar as circunstâncias; mas que nem por isso o espetáculo, mesmo insosso, poderia deixar de ser evidenciado. 

Quando era filhote a pavoa-alerquim precisou receber cuidados especiais: tivera que receber doses, pingadas nas suas narinas e nos olhos, das vacinas contra a doença de new castle.

Quando cresceu, o suficiente para notar as diferenças, entre as camisas zebradas dos seus tratadores com a dos prisioneiros do buque congestionado, e poder concluir também que música de raiz não era música de mandioca, percebeu que a vida seria muito mais difícil do que aparentava ser. Por isso tornou-se seca-na-paçoca e quando via que perderia o controle do galinheiro, botava logo doses maciças de anfetaminas no bebedouro.

Ela tinha o hábito de se aboletar nos poleiros mais elevados devido ao instinto de preservação da espécie. Gostava de minhocas e apreciava o milho fresco nos cafés matinis. Não pense você que ela era boba, meu nobre leitor! Ela não se considerava um Alfred Nobel, mas tinha lá suas idéias explosivas. E quando disse que um botijão de gás sobre a chama da boca velha, dum fogão qualquer, faria enorme bagunça no coreto, alguns olharam-na com reprovação e desconfiança.

Essa pavoa louca dos infernos não media esforços pra se destacar nas torrinhas. Queria a representação dos demais bípedes plumados e mostraria então com quantas penas faria as tangas e cocares para as evoluções nos sambódromos. 

Sua maior matutice não a impedia de tentar efetivar varreduras substanciosas naquele chão cheio de palha seca e serragem de madeira. Mostraria que seu bico não era tão fino assim e que a faxina preparada seria avassaladora. Que os carcamanos da balbúrdia saíssem da frente!

A esquisita da inferneira tinha um hábito que poucos conhecem: dormia com uma touca alaranjada pra assentar a plumagem, já esmaecida, do seu frontispício encarquilhado. 

Ela detestava o gato rajado buliçoso. O travesso que se acautelasse. Ele não deveria entrar assim sem avisar, no criadouro, e passear à vontade pra cima e pra baixo. Mesmo que se identificasse como plumoso, deveria ser seguido e mantido longe das pavoazinhas que alimentavam os filhotes.

A pavoa-alerquim meteu-se, em certa ocasião, numa enrascada: não encontrara outro jeito de comprometer um adversário seu senão acusando-o de estupro. Mesmo sem provas ou testemunhas, denunciou a vítima como o pior dos seres. O fato aliviou as tensões que vinha sofrendo; mas no fundo uma voz, mesmo que bruxuleante, clamava por eqüdade.

No seu emprego público, cuja função era manter aquele seu bundão untuoso atrelado e imóvel, naquela cadeira dura, a pavoa-alerquim, dos infernos, clamava por alguém quando ouvia barulhos no corredor. Ninguém mais do que ela sentia a solidão das coisas.

Essa pavoa-alerquim-maléfica tinha alguma coisa a ver com Luísa Fernanda, a chefona, Kol da Mumunha, vovó Bim Latem e, Val da seita maligna. Mas eu não poderia afirmar, com certeza, sobre sua inscrição no bando sedicioso do pavão louco.
 
 

fale com o autor