UMA COISA ESQUISITA NO GESTO
Bárbara Helena
 
 

"If I feel tomorrow, like I feel today,
If I feel tomorrow, like I feel today,
I'm gonna pack my trunk and make my getaway"
(St Louis Blues)

Marina tinha um filho americano.

Na maior parte do tempo esquecia disto. Mas no delírio do álcool seus olhos ferviam, o passado esfregado nos dedos nervosos tilintando o gelo.

Eu quase podia rever as cenas, mesmo que a língua nunca repetisse as frases mortas. Ninguém viveu tão intensamente aquela fase como Marina, Billie e eu - cúmplices do sofrimento anunciado.

O sujeito era empresário de um conjunto de jazz em Nova Orleans. Ainda por cima bonito - barba ruiva, olhos estreitos e verdes, brinco prateado na orelha, bandana nos cabelos longos. Ficou maluco por Marina, seu brilho louro, a voz rouca de Holliday cabocla, curvas brasileiras, os blues alcoolizados que fazíamos nas madrugadas do café com fumete após o show. Sob a lua amarelas dos trópicos, ela parecia irresistível com o ar blasé de diva. Algumas promessas e muitos martinis depois, caiu nos braços ianques para total infelicidade de Billie e minha alegria.

A paixão incendiou os shows dos Cigarettes. Marina quase levitava e os blues de sua alma apaixonada atingiam direto os corações, com o sofrimento atroz da guitarra de Billie e minha felicidade obscena. Mimi e Tim Rouco, o baixista, se contentavam com a posição de coadjuvantes, percebendo na alma blueseira uma tempestade musical de beleza. Talvez tenha sido a melhor época da banda - nunca mais fomos tão absurdamente intensos e jovens. Nem tivemos tanto público de verdade, gente que esperava música, a mesma que amávamos, parceiros. Depois Steve carregou Marina para o sonho americano. Ia ser vocalista de uma banda de jazz em New Orleans. Acontecera.

Na volta do aeroporto, Cubango deu pó para Billie, coisa abjeta e destruída pela dor. Eu morri no álcool e Mimi nos braços fortes dos caminhoneiros. Tim Rouco carregava nós dois para os quartos, colocava na cama, dormia com Mimi, chorava junto. Grande cara, baixista maravilhoso, bissexual, morreu de Aids alguns anos depois. Mas ainda assistiu a volta de Marina.

Coisa esquisita os Cigarette Blues - nenhum de nós conseguia escapar dali. Talvez fosse Billie, sua guitarra mágica e o amor pelo blues. Talvez fosse minha desesperada paixão por ele. Talvez a nossa crença obstinada de que algum dia seriamos entendidos. Talvez fossem os poucos que nos seguiam através do tempo. Não sei. O fato é que Marina voltou para nós. Billie renasceu do pó, eu afundei mas todos comemoramos.

Com o tempo ficamos sabendo retalhos da história - a banda de jaz faliu na feroz competição americana e Steve abandonou Marina. Simples assim. Do filho americano ela só falou muito tempo depois. Ficara lá, criado pela família do pai, com dinheiro e leite especial. Não demonstrava culpa ou saudade. Levantava os ombros, fechava os olhos magníficos e cantava - Holliday rediviva - cantava como jamais alguém cantou o sofrimento. E assim seguimos, esquecidos da dor individual, perdidos de música.

Um dia Marina me procurou, respiração ofegante. Achei que fosse pó, ela andava esquisita, excitada, olhos arregalados, mistérios.

- Jimmy está no Brasil.

- Ahn?

- Jimmy, meu filho...

Olhei para ela estarrecida. Marina jamais falara nele em todos aqueles anos. Só consegui repetir:

- No Brasil?

Puxou um cigarro dos meus, pegou o isqueiro, acendeu, deu uma longa tragada e respondeu:

- É... aqui.. no Brasil. Falei com ele.

- Menina!.. que coisa... - eu garimpava palavras na mente vazia - quantos anos ele tem agora?

- Dezoito.

Meu coração caiu. Dezoito anos já! O tempo passa.

- Bacana - não pude evitar a pergunta - Vai se encontrar com ele?

Soprou a fumaça devagar, naquele jeito dela, depois retirou um fiapo de fumo dos lábios cheios, prendendo os dentes.

- Vem aqui hoje. Ver os Cigarette Blues...

- Hoje? ...o chão fugiu dos meus pés. Olhei o palco iluminado na nossa frente, as mesas vazias, o cenário decadente do velho Hotel, sua cortina grená aveludada. Ficamos fumando em silêncio. Até que eu perguntei:

- Avisou Billie e Mimi?

- Não. Você faz isto pra mim?

Respondi que sim com a cabeça, incapaz de falar, paralisada de espanto. Marina fumava calada - mãos finas, o esmalte vermelho, nem um tremor. Apenas os olhos aumentados e a respiração ofegante como se estivesse drogada. Senti uma pena imensa dela, o ressentimento de anos desapareceu. Queria poder dizer algo bonito, que diminuísse o sopro do passado reencontrado. Mas estava seca, de beleza e de palavras. Levantei com cuidado, como se temesse que um movimento brusco fizesse desmontar sua armadura e fui procurar os outros.

Mimi ficou feliz, planejou modificações no show, homenagem ao encontro dos dois. Queria conversar com Marina, saber detalhes. Pobre Mimi e sua alma romântica!

Billie estava chapado - era sempre assim antes dos espetáculos. Olhou indiferente, coçou a cabeça e dedilhou um solo tristíssimo na guitarra. Avisei o Chiquinho, novo baterista, rapaz contratado há alguns meses e Alma Cigana, o pistonista. Eles se entreolharam espantados, mas não fizeram perguntas - abençoei os dois por isto.

Fui para o trailer, me tranquei lá até a hora do show. Contrariando meus hábitos abri duas latas de cerveja e detonei. Eu merecia. Mimi e Marina chegaram pra se arrumar, eu estava pronta. Vinham com os olhos vermelhos. Mimi soubera dizer o que eu não conseguira. Talvez.

Fui até o palco, encontrei os três passando o som e me distrai com uns vocalizes. Não havia ninguém com cara de Jimmy na plateia. Billie começou a introdução e Marina entrou com sua voz anasalada de Holliday, alma na garganta:

"Love me or leave me and let me be lonely
You won't believe me but I love you only"

A platéia sentiu o arrepio, aplaudiu, ela continuou:

I'd rather be lonley than happy with somebody else...

Nós acompanhamos, coadjuvantes nervosos, buscando. A cadeira vazia doía na alma. Marina cantava como se não fosse com ela - o coração esfrangalhado, mas inteira na música, acompanhando a guitarra, dialogando com o piston. Nenhum de nós ousava roubar sua cena. E a mesa continuava vazia, iluminada por nossos olhos ansiosos. O show estava quase no fim, algumas pessoas se levantavam para sair, eu recolhia a alma do chão, quando três rapazes levantaram a cortina da entrada e se dirigiram a mesa reservada, o filho de Marina, fácil reconhecer, os mesmos cabelos luminosos, acenou para ela. Sem piscar, ela começou e Billie foi atrás, reabrindo feridas:

I hate to see that evening sun go down,
I hate to see that evening sun go down,
Cause my lovin' baby done left this town.

Nós ficamos caladas - Mimi e eu - espectadores da pura beleza. Então aconteceu algo que nem em mil anos irei esquecer. O louro americano veio até nós, subiu no palco, pediu o piston e acompanhou Marina, seguiu a mãe atrás dos velhos blues de St Louis que unira seus pais.

I got those St. Louis blues, just as blue as I can be,
Oh, my man's got a heart like a rock cast in the sea,
Or else he wouldn't have gone so far from me.

Mimi se debulhava agarrada na minha cintura. E depois de muitos anos eu chorei. Sei lá por que. Acho que foi a beleza inesperada. Tem uma coisa esquisita no gesto.

Depois bebemos muito, a noite se afundou e o filho de Marina foi engolfado pela lembrança.

 
 

fale com a autora