DESCONSTRUINDO ONTEM
Bárbara Helena
 
 

"Lord have mercy, Lord have mercy on me
Lord have mercy, my heart's in misery
Crazy about my baby, yes, send her back to me"

Às vezes penso que foi tudo um sonho, que criei os personagens da minha vida. Que os Cigarette Blues foram apenas uma história amarga e linda. Mimi, Marina, o meu Billie e seu dente de ouro, Etevaldo na carteira de identidade, meu amor desde a Cachambi distante. Existiu o Cachambi da serenata antiga? será que fui tão inocente algum dia? Ou tão alegre como quando a gente ria na estrada pontilhada de estrelas, voltando das periferias empoeiradas? Ou tão triste como quando morreu Walmyr?

Walmyr, riso desatado de nordestino, a graça morena, cigarros na tarde caindo, enquanto Billie dedilhava um solo mais triste do que nós. O silencio da morte, a saudade. Saudade de Maria, a velha mendiga que amava os blues, the way you look tonight, deve haver um céu New Orleans em algum lugar por aí. Sei lá.

Enquanto eu fumo nesta mesa de bar, olho o bigode branco do Faustino e penso que não vivi aquela história. A noite enlouquecida de Billie, o amor que me levou aos astros, as galáxias perdidas de paixão, meu suburbano coração.

O cigarro me traz de volta um passado enfumaçado, o casamento de Mimi, sua esperança gorda, a decepção do Dorival, a fuga de Marina... Summertimes.

Existiu mesmo a época dos forrós que nos tornaram ricos de fim de semana? nosso retorno enverganhodo aos blues, todos nós, esfarrapados, amantes, Cigarettes. Ovo de botequim. Blues.

Mejicano que levou Billie ao Pó. Mr Dog, que Marina amou eternidade e meia, os caminhoneiros de Mimi, o triste apaixonado que desprezei, meu amor de verdade, eu vejo um sol.

As noites em que a gente ria sem razão, fumava pra esquecer, se entupia de pó - da estrada, da maquiagem rota, da vida vazia, da destruição de Billie, da cadeia. Billie e eu. Atirei num homem. Billie feriu a si mesmo.

As vezes penso que aquilo nunca aconteceu, o revólver, o babaca nos xingando, eu atirando, descarregando nele toda a frustração, as lantejoulas perdidas no caminho, as rugas do passado perdido, summertimes oh the fishes are jumping. Peixes num aquário. Plantações de algodão, céus de primavera, blues e amor machucada, canções e solos, guitarra e beijos, caminho sem volta do arco-íris. O filho de Marina St Louis blues. O delegado me soltando por causa da música. Vida estranha.

Estou aqui e sonho os Cigarettes blues. No cartaz, Marina é linda, loura, Mimi e suas curvas, eu bela na juventude estúpida do ontem. Billie, ainda magro, ainda querido, sorriso torto, talento enorme, meu amor.

Foi o que sobrou de toda aquela vida. Um cartaz encardido numa mesa de bar.

Pago a cerveja, penso em rasgar, não tenho coragem. Apago o cigarro, jogo Mimi, Marina, Billie e os Cigarettes Blues na rua empoeirada e saio.

O vento empurra o papel, ele voa, resvala no bueiro, desce nos paralelepípedos, sobrevive.

Eu corro atrás, tropeço, apanho o cartaz amarrotado e sujo. E, finalmente, me reconheço.

They call it stormy Moday, but Tuesday's just as bad
They call it stormy Moday, but Tuesday's just as bad
Wednesday's worse, and Thursday's also sad