LOLITA
Bárbara Helena
 
 

"These foolish things remind me of you"

O dia estava amanhecendo quando escutei um gemido ao lado da janela. Abri fresta para espionar o frio e encontrei Lolita.

Esquelética, cinza de sujeira, coberta de feridas, um olha mal aberto por pedrada. Abandonada e sozinha como nós.

Enfiei um casaco e, sem saber direito como alimentar aquele ser que despencara no meu coração, arrumei um prato de leite na cozinha: ela bebeu tudo, esfaimada. Achei uns biscoitos moles na mochila e Lolita aceitou com igual voracidade. Desde este dia firmamos pacto de amizade.

Lolita seguiu o trailer até que Billie, convencido pela guerra da ala feminina, aceitasse adotar esta mascote inesperada. Passou a dormir comigo, engordou, o pelo ficou brilhante, encorpado, seria um belo exemplar de vira-lata não fosse o olho que nunca mais se abriu totalmente.

Os Cigarette blues ganharam uma vocal inesperada. E, de um jeito ou de outro, todos nos apaixonamos por ela. Titulares e eventuais. Billlie era o preferido. Talvez numa simbiose comigo, sua companhia mais constante.

Como eu, perseguia seu vulto com os olhos, esperando um carinho, afago distraído, lembrança de existir. E corria na sua sombra, perninhas curtas, lambia as mãos escuras de nicotina e o nariz ressecado de pó.

Mimi, amante de tudo e todos, adotou Lolita nos seios fartos, mãe natureza, Ceres das periferias. Cuidava das eventuais feridas e foi quem segurou o corpo inerte na esterilização que todos sabíamos indispensável mas ninguém suportava assistir. Mimi, baluarte de certezas, compaixão sem razões, amor por instinto, parenta de Lolita pela Terra. Mas a maior surpresa foi Marina. Do alto de sua indiferença celeste, ela se apegou à cadela vadia como jamais aconteceu antes ou depois na sua vida errante. Mimava Lolita com pequenos presentes: um osso, cobertor, a caminha de plástico estampada, almofadas e até uma ridícula capa com chapéu que ela jamais usou por iniciativa própria, apoiada em peso pela companhia.

Durante alguns anos, Lolita foi nossa quinta Cigarette. Blues como nós, abandonada e adotada como igual. Mas foi Marina que ela seguiu naquela quarta luminosa de setembro, até a curva do rio. Talvez pressentindo que o destino iria acontecer ali, quando ninguém imaginava.

Marina tinha manias de diva, excentricidades. Uma delas era tomar banho nua nos lugares onde aportávamos, protegida pela solidão.

Neste dia, por causa do frio atrasado, preferiu sentar na margem do riacho, levantar a saia até as coxas e mergulhar as pernas muito brancas na correnteza. Brincava com os pés na água, enquanto Lolita, sentada ao seu lado, vigiava as árvores, o céu, as nuvens preguiçosas. De repente, levantou e começou a rosnar. Alertada por ela, Marina também ficou de pé, ainda segurando a saia sobre as pernas molhadas.

Um homem estava parado a poucas passos, olhando de forma óbvia para a nudez parcial de Marina. Entre assustada e zangada, ela se preparou para fugir, mas o desconhecido mostrou uma arma. Foi tudo muito rápido. Marina gritou, Billie, correu, seguido de Mejicano, eu logo atrás. Chegamos a tempo de ver a cena armada. O desconhecido nos colocou também na mira e fez sinal de silêncio. Paralisados, vimos o homem se aproximar da trêmula Marina, os olhos cheios de vontade crua. Quando estendeu a mão, um vulto leve e ágil se agarrou ao seu braço e dentes finos morderam a carne. O homem gritou, se sacudiu, urrando de dor, mas a valente Lolita não largava a presa.

Angustiada, pressentindo a tragédia, gritei: Lolita, não!

Foi inútil e tardio. O homem, o monstro, já tinha atirado. Ela caiu sem um gemido. Sem me preocupar com mais nada, voei para cima do corpinho coberto de sangue. Marina gemia baixinho. Como duas pietás brasileiras, seguramos Lolita no colo enquanto Billie e Mejicano corriam em busca de socorro.

O assassino fugiu. E não houve tempo de salvar Lolita. Ela morreu em nossos braços, olhando com doçura para as duas. Lolita, a cadela vira-lata, abandonada, apedrejada, vadia, foi a única com coragem de se sacrificar para proteger uma amiga.

Enterramos o corpo na curva do rio e fizemos o show de Ladeira Alta em homenagem a ela.

"And still my heart has wings
These foolish things remind me of you"

As pequenas coisas que lembram você.

Sempre que passo pela cidade, vou visitar o túmulo, onde Billie mandou escrever com letras douradas apenas um nome - Lolita. Em nós, nos Cigarette Blues, é muito mais do que a estrada para algum lugar desconhecido e melhor.